"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 18 de julho de 2012

O GERÚNDIO NA POLÍTICA

    
          Artigos - Cultura 
Essa formulação marota, à qual nossos ouvidos "vão estar se habituando" cada vez mais, ganha crescente espaço no discurso político.

Formas gerundiais devem ser usadas com cautela. Não são caldo de galinha do bom estilo. Por isso, chama a atenção a invasão dos gerúndios na comunicação nacional. Você liga para um 0800 da vida com o intuito cívico de reclamar sobre algo. Quer providência e solução. Não obstante, inevitavelmente, a resposta vem assim: Vamos estar encaminhando sua solicitação... Vamos estar entrando em contato. Vamos estar agendando. E por aí "vão indo" os encaminhamentos.

Poderíamos dizer que é apenas um dos muitos erros acolhidos no nosso modo de falar. No entanto, se prestarmos atenção aos motivos dessa construção verbal, perceberemos que a linguagem frauda a mensagem. O gerúndio, empregado assim, dissimula uma negação do que expressa. Cria uma ilusão, ao sugerir que a ação ocorrerá no tempo presente, de modo continuado - encaminhando, entrando em contato, agendando. Mas faz o inverso disso ao remeter tudo para as imprecisões do futuro e da impessoalidade, através do "vamos estar". Quem diz vamos estar, não está. Omite a informação sobre quando estará.

E não atribui a alguém o dever de estar. Para que a frase merecesse credibilidade seria necessário usar o verbo no tempo futuro, estabelecer quando a ação seria cumprida e indicar seu sujeito: encaminharei neste momento, entrarei em contato hoje, o diretor agendará imediatamente, e assim por diante. Imagine, leitor, o que aconteceria se na empresa do tal 0800, um gerente, interpelado por seu chefe sobre determinado problema, respondesse com um "vamos estar verificando e estaremos encaminhando"...

Mas isto aqui não é lição de Língua Portuguesa. Nem eu a saberia ministrar. Pretendo mostrar que essa formulação marota, à qual nossos ouvidos "vão estar se habituando" cada vez mais, ganha crescente espaço no discurso político. Aliás, é a cara da nossa política perante as carências nacionais. Reflete a falta de projetos, a fatuidade dos programas de governo e os solavancos administrativos causados pelas manchetes. As decisões de governo, no Brasil, "estão sendo" tomadas ao sabor das emoções.

Indagado sobre problemas específicos de sua atividade, o gestor público nunca mostra surpresa e raramente fornece resposta com começo meio e fim. A nova técnica consiste em dizer que "temos estado estudando" e "estaremos acompanhando, planejando, promovendo" ou coisas que o valham. Assim, há mais de uma década, temos estado tentando sair do RS para o norte do país por uma rodovia digna, e há mais de trinta anos temos estado programando soluções para o problema da BR-116 entre Porto Alegre e Novo Hamburgo, por exemplo. Eminentes pedagogos têm estado estudando a queda dos nossos indicadores educacionais, mas são sucessivas gerações de alunos que vêm sendo, mesmo, prejudicadas.

Avizinha-se um pleito municipal. Fique atento ao que dirão os candidatos. Firmou-se entre nós um hábito segundo o qual o que é prometido para os primeiros dias seguintes à posse, o pacote de bondades do discurso eleitoral, fica postergado para o último mês de dezembro do quadriênio em disputa. E o que acaba posto em prática é um pacote de maldades cautelosamente omitido durante a campanha.

Os candidatos deveriam detalhar e comprometer-se com seus programas de governo. Os eleitores deveriam esmiuçá-los, ponderá-los, confrontá-los. E cobrá-los. No Brasil, ganha-se a eleição com um programa e governa-se com outro. A partir da posse, as bondades vão para o gerúndio. E o presente do indicativo serve para outras coisas.

 Percival Puggina |
18 de julho de 2012
Publicado no jornal Zero Hora.

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