"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

AMOR E CRUELDADE: UMA UNIÃO POSSÍVEL?

    
          Artigos - Movimento Revolucionário 

O raciocínio de Slavoj Žižek demonstra não apenas a completa ignorância acerca das Sagradas Escrituras, mas também a sua aberrante defesa de que os fins, de fato, justificam os meios. Traçar um paralelo entre Jesus Cristo a Ernesto “Che” Guevara é um dos expedientes mais recorrentes da canalha revolucionária nas últimas décadas.

O que é amar? Hoje, essa ideia se tornou tão banalizada que seu conceito perdeu-se numa mixórdia de significados – às vezes, mutuamente contraditórios. Se pudéssemos, com brevidade e propriedade, conferir um conceito a “amor”, poderíamos fazê-lo dizendo que amar significa a capacidade de doar-se a si mesmo de maneira incondicional e desinteressada.
Em sua belíssima obra “A Fé Explicada”, Leo J. Trese, O. S. B., exemplifica muito bem o que é o amor no que concerne a relação entre o homem e Deus: “Não é pelo que sentimos sobre Deus, mas pelo que estamos dispostos a fazer por Ele, que provamos o nosso amor a Deus.”

No entanto, esse amor – essa submissão da vontade e entrega do ser em que nos colocamos inteiramente à disposição de algo ou alguém – não é livre de limitações que lhe conferem um sentido legítimo e pleno.
Na verdade, só é possível se falar em amor de fato, amor verdadeiro, quando esse amor submete não apenas o ser àquilo (ou àquele) que se ama, mas quando submetemos a vontade aos modos corretos de se manifestar esse amor.

Tomemos por exemplo o amor a uma mulher. Se a amamos, é certo que nos doamos a ela por inteiro, que nenhuma de nossas ações são tomadas sem que a levemos em consideração, que nenhum de nossos gestos e provas de amor sequer espera a mesma contrapartida (uma vez que a essência do amor é a doação).

Suponhamos agora que essa mulher esteja sofrendo uma injusta campanha de difamação por parte de uma terceira pessoa, e que, em nome do amor que sentimos, decidimos matar a pessoa responsável pela injusta perseguição à mulher amada. De fato, dispusemo-nos a matar alguém em nome do amor.
Entretanto, seria correto chamar de amor um sentimento que, uma vez exercido ao extremo, resulta em um ato de brutalidade como o assassínio? Se admitirmos que sim, então, de alguma forma, o caráter sublime do amor é tão intenso que chega a purificar o mais baixo dos crimes – e, assim, tudo pode ser feito em nome do amor, pois o amor tudo purifica.

Slavoj Žižek, um dos mais célebres intelectuais de esquerda da atualidade, publicou recentemente uma análise interessante do filme “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. E o que é justamente interessante é que, para Žižek, qualquer ato de crueldade cometido em nome do amor não é só plenamente justificável, mas além: é imprescindível. Em artigo publicado recentemente pelo blog da Editora Boitempo, defende Žižek (grifos nossos):

No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza.
Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara:
“Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”.

O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”.

A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:

O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.

Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional.

É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.

O raciocínio acima exposto demonstra não apenas a completa ignorância de Žižek acerca das Sagradas Escrituras, mas a sua aberrante defesa de que os fins, de fato, justificam os meios.
Traçar um paralelo entre Jesus Cristo a Ernesto “Che” Guevara é um dos expedientes mais recorrentes da canalha revolucionária nas últimas décadas – sobretudo no âmbito da América Latina, em que se tenta a todo custo instrumentalizar a tradicional religiosidade cristã de nosso subcontinente em prol da revolução socialista.

Ademais, é uma das mais torpes, ultrajantes e ignóbeis comparações que se pode fazer.
Cristo propugnou a violência contra si mesmo – as paixões, as más inclinações, a concupiscência –, contra o homem velho, de modo a fazer prevalecer o homem novo, o homem sob a égide da Lei Divina, através de uma submissão voluntária e individual a Deus e Seus mandamentos.
 
Este é o mesmo Jesus Cristo que, ante a turba revoltosa que queria apedrejar a adúltera, desafiou que lançasse a primeira pedra aquele que era livre do pecado; este é o Cristo que jamais endossaria a ideia de que “o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar”.
 
Só há amor real, pungente, cristalino, belo e verdadeiro quando esse amor nos conduz a um estado unitivo não apenas com o objeto de nosso amor, mas com a própria ordem transcendente da qual esse amor emana.
 
Quando se quer exercer esse amor fora dos limites traçados por essa ordem transcendente, o que ocorre é a degeneração do amor em excrecências do espírito – luxúria, obsessão, psicose, dentre outras.
Não havia amor em Che Guevara: o que havia era a obsessão por um igualitarismo autoritário cuja superioridade moral não se encontrava na força das ideias ou na veracidade dos valores, mas nas pontas das baionetas e nos cartuchos dos fuzis. Não existe amor real em uma verdadeira revolução: o que existe é a demolição dos alicerces sobre os quais a própria natureza se sustenta.

06 de setembro de 2012
Felipe Melo

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