"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 2 de dezembro de 2012

DF FAZ CONTRATO MILIONÁRIO, SEM LICITAÇÃO, COM FIRMA DE CINGAPURA

Empresa deverá planejar desenvolvimento do entorno de Brasília


Teck Lee, da Jurong: responsável pelo projeto para a Região Metropolitana
Foto: Agência O Globo / Givaldo Barbosa
Teck Lee, da Jurong: responsável pelo projeto para a Região MetropolitanaAgência
O Globo / Givaldo Barbosa

BRASÍLIA e MACEIÓ — A decisão do governo do Distrito Federal de contratar, sem licitação, uma empresa de consultoria do governo de Cingapura, na Ásia, para projetar o desenvolvimento da Região Metropolitana de Brasília nos próximos 50 anos gerou controvérsia e levantou suspeitas.

O Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e parlamentares do DF pediram a imediata suspensão do contrato de R$ 8,6 milhões, assinado no último dia 3 de outubro, em Cingapura.
O caso será julgado pelo Tribunal de Contas local.
(Confira o projeto)

Por 3 votos a 1, o tribunal rejeitou liminarmente o pedido de suspensão formulado pelos senadores Cristovam Buarque (PDT) e Rodrigo Rollemberg (PSB). Em seu voto, o conselheiro-relator Manoel de Andrade chegou a sinalizar que não vê irregularidades no contrato.
Mas os conselheiros deram prazo de 15 dias ao governo do DF e à Jurong Consultants, como é chamada a autarquia de Cingapura, para que se manifestem antes do julgamento de mérito.

O contrato foi fechado com a Terracap, agência controlada pelo governo do DF, depois de uma rápida tramitação. No dia 25 de setembro três instâncias da Terracap — diretoria técnica, procuradoria e diretoria colegiada — chancelaram o negócio, atestando que não era necessário fazer uma concorrência. No dia seguinte, a contratação foi referendada pelo conselho de administração da agência. O contrato foi assinado sete dias depois, em Cingapura, durante viagem do governador Agnelo Queiroz àquele país.

As formalidades da contratação da Jurong também são questionadas. O projeto básico, divulgado no portal da transparência do governo do DF na internet, não é assinado nem tem data. Na versão em inglês do contrato, até mesmo o valor total do serviço — US$ 4.250.000, mais impostos — foi escrito com um zero a mais: “US$ 4.2500.000”.
Pior: a redação do valor por extenso, entre parênteses, também é equivocada (four million and two hundred thousand dollars), com US$ 50 mil a menos.

Em outro trecho, a versão em português diz que os técnicos da Jurong virão a Brasília pelo menos seis vezes, enquanto a versão em inglês diz cinco (five). Há ainda outros quatro erros nos valores das parcelas a serem pagas, na versão em inglês.
O contrato menciona que será executado nos termos do projeto básico e da “proposta da contratada”. Aí há outro problema: a minuta de proposta da Jurong informa que os pagamentos pelo serviço serão feitos no Peru. De acordo com o presidente da Terracap, Antonio Carlos Lins, trata-se de um erro de redação e o dinheiro será depositado no Brasil.

A opção do governo do DF pela inexigibilidade de licitação foi atacada. Cristovam e Rollemberg consideram que haveria outras empresas de consultoria interessadas em participar de uma eventual licitação.
Em defesa de sua escolha, o governo do DF diz que quer fomentar o crescimento econômico nas próximas décadas. E que buscou o que há de melhor no planeta em termos de consultoria para esse fim.

Lins afirma que o exemplo de Cingapura fala por si só: a cidade-estado de cinco milhões de habitantes é um dos tigres asiáticos e tem hoje um dos maiores PIBs (Produto Interno Bruto) per capita do mundo. Ascendeu economicamente em poucas décadas, após se tornar independente da Malásia, em 1965.
Em 2008, a consultoria cingapuriana foi contratada pelo governo de Minas Gerais, onde projetou a rodovia que liga o aeroporto de Confins a Belo Horizonte. Indagado sobre o motivo da contratação da Jurong, Lins é categórico:

— Porque é a melhor do mundo.

A Jurong deverá apontar caminhos para o desenvolvimento da região metropolitana de Brasília, em quatro polos fora do Plano Piloto — portanto, fora da área tombada como patrimônio mundial da humanidade, desde 1987, pela Unesco.

Um deles prevê a construção de um aeroporto de cargas. Os demais envolvem a criação de um centro financeiro internacional, um polo logístico e a ampliação de um polo empresarial. Pelo contrato, está prevista a elaboração de um plano estratégico e estrutural do DF e quatro planos diretores conceituais.

O caso entrou na briga política local: Lins diz que Rollemberg está de olho na sucessão de Agnelo. O senador, por sua vez, não poupa críticas ao governador:

— É muito estranho e esquisito que, em meio ao clamor por transparência que existe hoje, o governador assine um contrato de forma obscura, quase clandestina, sem ninguém saber nem ser consultado — diz Rollemberg.

O presidente da Terracap acusa o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), que se manifestou contra o projeto, de corporativismo. Uma equipe de 14 técnicos da Jurong passou a última semana em Brasília, na primeira das cinco — ou seis — visitas previstas no contrato. Cerca de 30 servidores do governo do DF ajudarão à Jurong.

— Não estamos aqui para ensinar, mas para dividir conhecimento. O mundo está ficando menor, vivemos numa vila global. Planejamento para nós é muito importante — disse o planejador-chefe da Jurong, Raphael Chua Teck Lee.

Arquitetos questionam capacidade da Jurong

No XXIV Congresso Panamericano de Arquitetos que ocorreu durante a última semana em Maceió, o plano para projetar o entorno de Brasília foi o assunto mais comentado e despertou a ira de profissionais brasileiros e estrangeiros.
A direção do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) discutiu medidas para impedir que ele avance. E um documento assinado pela Federação Panamericana de Associações de Arquitetos (FPAA) em repúdio à parceria com a Jurong, empresa de Cingapura, elaborado ao final do evento, será apresentado à Unesco e à União Internacional de Arquitetos (UIA), ligada à agência das Nações Unidas.

O presidente do IAB nacional, Sérgio Magalhães, espera a intervenção dos organismos internacionais no campo diplomático, com a justificativa de que Brasília é Patrimônio da Humanidade, título concedido pela Unesco há 25 anos.
 Uma das críticas é que Cingapura não tem afinidades culturais com o Brasil e que se trata de um lugar com restrições às liberdades individuais, enquanto a capital brasileira, projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, é um símbolo da democracia e expressão do modernismo internacional.

— O reconhecimento de Brasília como Patrimônio da Humanidade cria um compromisso que é compartilhado também entre o governo brasileiro e a comunidade internacional. E, no entendimento contemporâneo, a cidade é a sua expressão cultural, fruto dos agentes locais.
Tal expressão precisa ser considerada no urbanismo. O seu planejamento só faz sentido quando está intrinsecamente associado à população — diz Magalhães.

Os questionamentos abrangem a capacidade da Jurong em planejar uma cidade brasileira tão peculiar em sua arquitetura-urbanismo, com dimensões sociais, econômicas, culturais e políticas próprias. Presente ao congresso, o presidente da UIA, o arquiteto francês Albert Dubler, critica o plano:

— Para arquitetos do mundo inteiro, Brasília é um exemplo. Não sei para quem Cingapura é um exemplo. É como se para fazer um restaurante na França chamássemos o McDonald’s.

Brasileiros qualificados

O arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, chama de lamentável a medida. Ele participou da construção de Brasília, é amigo de Oscar Niemeyer e é considerado um dos maiores arquitetos brasileiros.

— Acho lamentável uma proposta para acompanhar o planejamento da cidade por 50 anos. Não existe quem seja vidente ou faça ficção cientifica. E ainda é um planejamento que envolve um país que não tem afinidades culturais conosco — avalia Lelé.

No documento que será apresentado à Unesco, a FPAA expressa sua preocupação “quanto às consequências negativas — e certamente irremediáveis — à cultura americana e universal da intervenção de uma empresa de Cingapura para planejar os próximos cinquenta anos de Brasília”.

O documento ainda destaca a qualificação dos arquitetos e urbanistas brasileiros, que ficaram de fora, e que o planejamento territorial e urbano “é tarefa indissociável do exercício da soberania política”.

02 de dezembro de 2012
O Globo
Demétrio Weber, Ludmilla de Lima

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