"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A EXPLORAÇÃO TOTALITÁRIA DE UMA DOENÇA

Por um mínimo de coerência, o Brasil deveria propor a suspensão da Venezuela do Mercosul visto o absoluto desrespeito à sua própria Constituição

A morte é o fim de um ciclo de vida individual, algo próprio da condição humana e animal em geral. No caso humano, ela é intensamente vivida sob a forma de uma angústia diante da finitude, o que dá ensejo a concepções religiosas prometendo uma outra forma de vida, a da beatitude diante de Deus. Estabelece-se, assim, religiosamente um nexo entre o finito e o infinito, o temporal e o eterno, mesmo sob o império do término das condições de vida propriamente terrenas.

No caso de líderes totalitários, o dirigente mor é investido de um manto de eternidade, no qual terminam se identificando a sua pessoa física, mortal, com a político-jurídica, avessa a qualquer forma de temporalidade e finitude. Na pessoa do líder totalitário, confunde-se a sua vida com a do seu regime político, como se a sua morte equivalesse à morte do regime nele identificado. O medo dos seus herdeiros e discípulos é que com o fim da vida do líder máximo esteja sendo sinalizado, senão concretizado, o fim de sua forma de exercício do Poder.

O segredo é a forma dada a essa forma de doença totalitária. Os “companheiros” temem, antes de mais nada, a transparência, pois ela seria uma forma de tornar público o que está acontecendo. Dirigentes totalitários abominam, sobretudo, a prestação pública de suas ações, pois execram a democracia baseada na liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, assim como o exercício de Poderes, como o Legislativo e Judiciário, que sejam autônomos e independentes. A “Suprema” Corte venezuelana é “mínima”, sendo, nada mais, do que uma porta-voz do Supremo Hugo Chávez.

A doença de Hugo Chávez é um exemplo particularmente elucidativo de sua natureza totalitária. Acometido de um câncer, optou pelo segredo de Estado e por tratamento em Cuba, país sem nenhuma capacitação médica para esse tipo de tratamento. Entre a sua vida pessoal e a preservação do regime, escolheu essa última. Diante da morte, o seu medo maior é a prestação pública diante dos cidadãos do seu país, que teriam todo o direito de saber o que está acontecendo com o seu presidente.

Em vez disso, os cidadãos venezuelanos e a opinião pública mundial têm direito aos “comunicados” lidos por lideranças chavistas, que estão comprometidas com a mentira e não com a verdade. Acreditar nas “informações” chavistas equivale a acreditar na existência de vida na Lua.

A melhor analogia cabível no caso seria a de compará-la com a doença e morte de Stálin, também tratada sob a forma do maior sigilo. Ademais, o líder soviético tinha tanto medo de sua morte, digamos política, que os mais próximos, quando de sua última crise, temiam chamar médicos e tocar no seu corpo. O maior segredo consistia na doença do líder totalitário, considerado em sua “imortalidade” e “onisciência”.

Aliás, Stálin deve estar ruborizado com a falta de tato dos seus discípulos bolivarianos. Não conseguem nem mesmo respeitar a Constituição por eles mesmos elaborada em seus mínimos detalhes. Fazem uma coisa, dizem outra, quando na dizem coisas distintas e contraditórias entre si. Deve o finado líder soviético estar pensando que bolchevismo com república de bananas não pode mesmo dar certo!

Até para mentir são eles incompetentes. Para justificar suas ações, suas aparições públicas são equivalentes a uma ópera bufa. Considerar, por exemplo, a posse do presidente para novo mandato, na data aprazada, como uma mera “formalidade” significa dizer que toda a Constituição é, na verdade, uma mera formalidade. Formalidade essa que será seguida ou não conforme os dirigentes totalitários assim o decidirem.

Nesse contexto, a ida do assessor da Presidência da República a Cuba para se inteirar da saúde de Hugo Chávez e para se informar das condições de sua sucessão adicionou um toque de ridículo ao que já é, de per si, hilariante. Voltou afirmando a “constitucionalidade” da violação constitucional em curso na Venezuela.

Inteirar-se da constitucionalidade de uma medida com Fidel e Raul Castro e com o Vice-presidente Nicolas Maduro equivale a diagnosticar uma doença com curandeiros ou mágicos. Os irmãos Castro nem sabem o que significa uma Constituição, têm um desconhecimento e desprezo total pelo Estado Democrático de Direito. Os bolivarianos são seus pequenos aprendizes, embora o dano causado por eles seja enorme. São pequenos em estatura política e moral, porém grandes em seus malfeitos.

Por muito menos, o Paraguai foi suspenso do Mercosul, por esse país não ter supostamente obedecido à “cláusula democrática” em vigor nesse tratado. Tal ação liderada por Hugo Chávez e orquestrada por Nicolás Maduro contou com todo o aval e apoio do governo brasileiro.

Acontece que, no caso paraguaio, a Constituição daquele país foi plenamente respeitada, enquanto no caso Venezuelano ela está sendo claramente pisoteada. Por um mínimo de coerência, o Brasil deveria propor a suspensão da Venezuela do Mercosul visto o absoluto desrespeito à sua própria Constituição. O que ocorre, porém? O governo está dando mais uma vez aval à subversão democrática chavista.

Hugo Chávez está entre a vida e a morte. Se constitucionalmente caberia estabelecer se sua ausência é temporária ou permanente, tal diagnóstico só poderia ser feito por uma junta médica, independente e agindo por razões científicas. Em vez disso, temos os “comunicados” bolivarianos que usam a mentira como instrumento de governo. Uma junta médica independente poderia dar transparência a um processo politico desse tipo. Contudo, o que mais temem os totalitários é a verdade.

Enquanto isso, atabalhoadamente, resolvem os seus conflitos e disputas internas de Poder, estabelecendo as condições de manutenção de um regime que vive da figura de seu líder máximo. Ganham tempo tratando politicamente da doença de Chávez. Dão um golpe à Constituição por eles mesmos elaborada e, tipicamente, seguindo a cartilha totalitária, acusam os outros de estarem tramando um golpe. A exploração totalitária da doença não tem limites!

15 de janeiro de 2013
Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O Globo

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