"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

SOBRE UM MONUMENTO


Nasci em um deserto verde, onde o ser humano vivia longe do ser humano. Eu tinha um tio a meio quilômetro de minha casa, outro a meia légua
e depois o Uruguai, em cuja fronteira só havia um castelhano, Don Floro Rocha. Nesta geografia, cada gesto toma um sentido distinto do sentido urbano. Uma visita não é apenas uma visita. Se alguém aperava seu cavalo e ia até algum vizinho próximo – coisa de mais de légua, digamos – e na casa do vizinho havia moça solteira, a visita era quase um compromisso de noivado.

A vida social era feita nos bolichos, as vendas de secos e molhados, onde aos domingos o que mais se vendia era cachaça. Ou nas missas dominicais, na capelinha das Três Vendas, que eram mais um pretexto para o jogo de osso e mais tarde – quem sabe? – um baile. Não havia telefone e radiotransmissores eram privilégio de estancieiros. A comunicação de casa a casa era feita por espelhos.

O gaúcho que conheci – e que não mais existe – era um homem taciturno. Vivia sempre calado, que mais não seja porque não tinha com quem conversar. Trabalhava de sol a sol na lavoura ou com o gado, acompanhado apenas de seus pensamentos. Esta solidão está manifesta no poema de Hernández. Na pampa, Martín Fierro tem poucos interlocutores: o sargento Cruz, el viejo Viscacha, el Moreno e, mais tarde, seus filhos.

O encontro com outro ser humano era sempre uma festa, ocasião para uma charla e para inteirar-se do que ocorria nos pagos. Se um gaúcho cruzava por outro na Linha, sempre o cumprimentava, mesmo que não o conhecesse. O mais provável é que encostassem cavalos e ficassem proseando, sentados no lombilho. Ou apeavam e ficavam de cócoras conversando, durante horas, em uma posição em que poucos suportam dez minutos. As ocasiões de conversar eram raras e não podiam ser desperdiçadas.

Já provoquei não poucas discussões entre a gauchada, ao comentar a paz farroupilha, paz que não foi paz, mas rendição. Os rio-grandenses – como também os paulistas, ao celebrar a Revolução de 32 – comemoram uma derrota. Algo como se os franceses celebrassem Waterloo, como se os portugueses festejassem Alcácer Quibir, ou os espanhóis saudassem a derrota da Invencível Armada para Francis Drake. Com um agravante: os rio-grandenses consideram-se todos brasileiros da gema e cultuam um movimento separatista.

Independentemente de discussões sobre os farrapos, encontrei em Dom Pedrito um monumento dedicado a tal de paz farroupilha que me fez evocar meus dias de campo. O monumento tem elementos que talvez passem despercebidos aos contemporâneos.

Primeiro, a forma com que soldado e farroupiha se cumprimentam. É uma maneira antiga, hoje em desuso. Cada um avança o braço, bate a mão na mão, a mão no cotovelo e a mão no ombro. Se eu cumprimentar assim alguém de minha idade, serei correspondido. Os mais novos já não entendem esse gesto.

No monumento, o farroupilha usa botas de garrão de potro. Confesso não saber se os farrapos as usavam, são calçados dos tempos de Fierro. Tirava-se o garrão do potro inteiro, que era enfiado no pé. Os dedos ficavam de fora, livres para segurar um braço da boleadeira.


De meus dias de guri, lembro de uma adivinhação, gênero muito cultivado entre a gauchada. Propunha-se um enigma, geralmente em forma de verso, e o interlocutor tinha de adivinhar do que se tratava. Uma das quadrinhas falava da filha de um prisioneiro, que levava como presente ao juiz um potrilho:

En los brazos tengo el hijo,
En los pies traigo su madre.
Adevine, señor juez,
O entonces suelte mi padre.

O enigma exigia algum conhecimento dos tempos antigos. A mulher usava botas feitas com o garrão da mãe do potrilho.

Hoje, as botas de garrão de potro são usadas em CTGs, aqueles circos onde homens urbanos se fantasiam de gaúcho para relembrar um passado mítico. Nem tão mítico, pois de fato existiu, mas não da maneira como é narrado. Lembro ter visto algumas, mas apenas cobrindo a canela, com uma espécie de sapatilha em baixo. Que isso de andar de dedinhos de fora não é para gaúchos de asfalto.

Enfim, se a homenagem repousa numa ficção, o escultor sabia o que era o gaúcho.


15 de janeiro de 2013
janer cristaldo

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