"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 8 de abril de 2013

MARGARETH THATCHER: PRIVATIZAÇÃO, UM LEGADO MANTIDO POR BLAIR E CAMERON

Em 11 anos de poder, foram mais de 40 empresas privatizadas, com um resultado que divide analistas


Margaret Thatcher chegando na Abadia de Westminster em 2010
Foto: LUKE MACGREGOR / REUTERS
Margaret Thatcher chegando na Abadia de Westminster em 2010LUKE MACGREGOR / REUTERS

LONDRES - “Quer entender a influência de Margaret Thatcher? Olhe para Tony Blair.” Recorrente na mídia britânica no início dos anos 2000 quando o assunto era o legado de um de seus mais importantes ícones políticos, a anedota faz alusão ao famoso discurso feito por Blair, em 1999, quando o então primeiro-ministro do Reino Unido declarou, em plena convenção do Partido Trabalhista, que a luta de classes havia acabado. Parecia recitar o que pregava Thatcher anos antes e dava início à guinada à direita que marcou o seu “Novo Trabalhismo”.

Debates políticos à parte, é no campo da economia que Thatcher garantiu seu lugar na História britânica, como heroína e vilã. Eleita em 1979, Thatcher não usou de parcimônia nas reformas nos seus 11 anos no poder: seu programa de privatização fez com que mais de 40 empresas - incluindo as de ramos estratégicos como petróleo, gás, energia elétrica e nuclear, e telecomunicações - saíssem das mãos do Estado, na maior operação do gênero já vista.

Thatcher deixou o governo em 1990, mas seus sucessores, incluindo Blair e o atual governo conservador de David Cameron, mantiveram a filosofia de privatização. Desde que assumiu o poder, em maio de 2010, Cameron tem implementado uma política profunda de redução de gastos que lembra o legado de Thatcher.

Hoje, o Royal Mail (os correios) desponta como única empresa de porte pertencente ao governo, e mesmo o outrora intocável sistema público de saúde anda recebendo investimentos privados.

O modelo iniciado por Thatcher valeu à pena? A pergunta recebe respostas ambíguas de analistas. Até porque a ambiguidade também marca os efeitos das privatizações do país. Se na telefonia a abertura do mercado e a venda da British Telecom resultou em preços mais baixos e uma qualidade de serviço muito melhor, o mesmo não ocorreu com a malha ferroviária que, do imponente pioneirismo da Era Vitoriana, transformou-se em motivo de piada na Europa. Um quadro semelhante ao vivenciado pelos passageiros do metrô com a criação da parceria público-privada em 1998.

Economia mais dependente do setor financeiro

Há quem argumente que a herança de Thatcher tenha deixado o país mais vulnerável a crises, como a que afeta o mundo nos últimos anos. Muitas regiões, por exemplo, não teriam se recuperado do desaparecimento de suas indústrias nos anos 80. E isso se reflete em um aumento dos gastos com benefícios sociais, por exemplo, que pressionam as contas públicas. A economia britânica também se tornou mais dependente do setor financeiro — ponto de partida da crise atual.

— Em termos gerais, porém, não se pode dizer que as privatizações foram um mau negócio - diz o diretor do Instituto de Pesquisas em Economia e Desenvolvimento da Universidade de Cardiff, James Foreman-Peck. - Sob o controle do Estado, a produtividade dessas empresas era muito mais ditada pela política e, como ficou comprovado no caso da rede de abastecimento de água, não havia qualquer garantia de que os recursos gerados seriam reinvestidos de maneira apropriada, sobretudo quando o governo Thatcher enfrentava problemas com gastos públicos.

O déficit público, por sinal, foi a mola mestra do programa de privatizações de Thatcher; uma surpresa para as fileiras conservadoras. Privatizar não fazia explicitamente parte da plataforma da legenda para as eleições de 1979, em que a Dama de Ferro bateu o trabalhista James Callaghan e herdou um país às voltas com greves e uma recessão que ajudava a fazer do Reino Unido uma das nações mais pobres da Comunidade Europeia — tanto que, dois anos antes, Callaghan havia sido forçado a vender parte das ações da British Petroleum, a então estatal petrolífera, para cumprir um acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

- As privatizações começaram muito mais como uma forma de gerar recursos do que como um incentivo à competitividade industrial - afirma Howard Reed, ex-economista-chefe do Instituto de Pesquisas em Política Pública, instituição de tendência trabalhista. - Embora haja casos de sucesso, sobretudo em termos de alternativas para o consumidor, o fato é que exemplos como o da indústria automobilística nacional, hoje praticamente desaparecida ou absorvida por companhias estrangeiras, mostram que temos um quadro misto.

A polêmica venda da British Airways

O furacão Thatcher serviu de modelo para iniciativas nos vizinhos europeus e mesmo em países asiáticos, mas encontrou forte resistência interna da parte das organizações sindicais, adversários políticos e mesmo supostos aliados. O ex-primeiro-ministro conservador Harold Macmillan acusou a Dama de Ferro de estar vendendo a prataria da família e, na campanha para as eleições gerais de 1987, os trabalhistas prometeram reestatizar todas as empresas vendidas caso levassem a melhor nas urnas. A chiadeira maior devia-se ao fato de o governo então estar negociando empresas como a British Airways, por valores até 20% menores que os estimados pelo mercado.

- Era uma questão de fazer caixa e também de incentivar a participação do público; tanto é que foram 2,3 milhões de interessados no leilão da British, um recorde mundial neste tipo de operação - explica um porta-voz do Instituto Adam Smith, de perfil conservador. - E, por mais que muita gente tenha reclamado, a privatização rendeu US$ 600 bilhões para os cofres do governo, permitindo que, na década de 80, a alíquota mínima do Imposto de Renda fosse reduzida de 33% para 25%, com a máxima caindo para 40%.

Em novembro de 1990, quando Thatcher renunciou ao cargo, um em cada quatro britânicos tinha ações de ex-estatais. Mas o processo também fez vítimas, criando uma legião de desempregados e contribuindo para o aumento da desigualdade social no país. A guinada do Reino Unido rumo ao liberalismo, porém, estava garantida, sendo ratificada cinco anos depois, quando o então parlamentar Tony Blair chocou as fileiras trabalhistas ao retirar a defesa da propriedade coletiva dos meios de produção do manifesto do partido.

- Uma comparação internacional de preços revela que as tarifas de serviços básicos pagas pelos britânicos são menores, ao passo que a produtividade das empresas envolvidas na privatização aumentou - sustenta Foreman-Peck. - Em alguns setores, as empresas precisam suar muito para garantir a adesão dos consumidores, melhorando os serviços. É claro que há problemas, mas seria muito difícil ter apenas acertos. Vale lembrar que antes da privatização da British até o funcionamento dos telefones públicos era complicado.

Opositores dizem, no entanto, que a febre de privatizações não foi acompanhada por um aumento dos investimentos em educação e que o número de desempregados no Reino Unido chegou a triplicar nos 11 anos de governo Thatcher. Mas o fato de que suas políticas foram, de certa forma, clonadas pela oposição é um sinal de que ela não estava tão errada como pensam os críticos.

08 de abril de 2013
O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário