"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 14 de abril de 2013

"THATCHER E SEU FIEL CONSORTE"


O low profile mantido pelo inquilino adjunto da residência oficial de Downing Street se apoiava no pouco apreço que ele reservava aos jornalistas
Por tamanha enrascada ninguém esperava, até porque Margaret Thatcher já estava fora do poder há 23 anos e, debilitada e com demência há mais de cinco, sequer aparições públicas mais fazia. Parecia destinada a ocupar levas de historiadores do século XX, como a mulher que maior poder político exerceu na arena mundial. E continuaria a gerar montanhas de análises sobre as transformações que impôs à sociedade britânica como chefe de governo. O que ninguém previu foi que a Dama de Ferro ainda ressuscitaria velhas paixões depois de falecida.

O anúncio de sua morte, na segunda-feira passada, gerou previsíveis manifestações de pesar, respeito e reverência para quem foi a figura mais dominante da Grã-Bretanha desde Winston Churchill em 1940. Só que o monopólio da narrativa apologética durou pouco. Paralelo ao luto oficial de quem vê em Thatcher a líder que salvou e modernizou o país, brotou a céu aberto o rancor armazenado por milhões de excluídos por sua política. Sindicalistas, mineiros, servidores públicos, todo o tecido social da Inglaterra de espinha dorsal quebrada que teve de se adequar à era Thatcher, pelo visto não esqueceu. Nem perdoou.

Ninguém estranha quando mortes de ditadores e tiranos são festejadas por opositores que a eles sobreviveram. Já o falecimento de líderes ou ex-líderes de países democráticos suscita, no máximo, indiferença em quem não quer se juntar ao luto nacional. Ofensas e regozijo são considerados de mau gosto. No caso de Margaret Thatcher, contudo, está valendo tudo.

Ruidosas chopadas em Brixton e Glasgow se sucederam alegremente desde o anúncio fúnebre que enlutou a nação. Enquanto se programa o solene e grandioso enterro de quarta-feira próxima, ao qual comparecerá a rainha, até mesmo um membro da força policial britânica já postou um tweet saudando “o mundo agora melhor, com esta morte que chegou 87 anos atrasada”. Foi expulso da corporação, é claro. Passeatas, protestos, acrimônia na internet não arrefecem. Polêmica em vida, Margaret Thatcher reemergiu além túmulo com todo seu potencial divisionário.

Em um único quesito, pode-se afirmar sem medo de erro, a primeira- ministra sempre obteve aprovação unânime: na figura do fiel consorte que ocupou 10, Downing Street a seu lado durante os anos no poder.

Denis Thatcher era um executivo de sucesso na indústria petrolífera, recém-aposentado, quando Margaret Hilda Roberts, com quem casara mais de duas décadas antes, se tornara líder do Partido Conservador. Além do sobrenome, deu à esposa a segurança financeira necessária para que ascendesse na política fazendo carreira solo.

Quando Margaret chegou no topo, como primeira mulher a comandar uma potência ocidental, não existia protocolo nem roteiro nem título nem “job description” para um consorte masculino. E ainda menos para um consorte tão claramente desinteressado em alterar o estilo de vida privado que levara até então. De início, foi um prato cheio para caricaturistas e humoristas. Pouco a pouco, porém, Denis foi ganhando a simpatia nacional ao definir os limites mínimos de sua obrigação e temperar suas poucas aparições públicas com o humor leve e solto que faltava à mulher.

Preencheu o papel com inteligência intuitiva, sem provocar arranhão na agenda pública da mulher — o que é notável, sobretudo se comparado ao desempenho de tantas primeiras-damas mundo afora. De ideias ainda mais conservadoras do que as da própria esposa, ele teve o bom senso de manter as suas em círculo fechado. E teve a sorte de um célebre descuido seu só ter se tornado público quando Thatcher já estava fora do poder: “Mantenha a Suíça branca”, aconselhara ele ao presidente daquele país, durante um jantar em 1984.

O low profile mantido pelo inquilino adjunto da residência oficial de Downing Street se apoiava no pouco apreço que ele reservava aos jornalistas. Chamava-os de “répteis”. Um provérbio aprendido com o pai lhe ensinara a arte de não dizer nada: “O homem só mata a baleia quando ela esguicha”.

Dennis Thatcher também caiu no gosto popular por nunca ter parado de tomar o seu gin de todas as horas, boas ou más (em eventos oficiais em que bebidas alcoólicas não eram servidas, encarregava o agente de segurança da esposa de abastecê-lo de “água especial”). Atravessou com cavalheirismo uma estrutura familiar oposta à moldura conservadora do seu entorno social. “Casei com uma das mulheres mais grandiosas que o mundo já produziu. Já o que eu produzi, soa pequeno: lealdade”, concluiu, ao final..

Denis Thatcher morreu dez anos atrás, aos 88 anos e recebeu louvas em uníssono de todos os partidos. Alguns, como é de praxe, se excederam. “Ele foi um verdadeiro grande homem. Sem ele, seria impossível imaginar a sra. Thatcher alcançando o sucesso que alcançou”, proclamou o líder conservador Duncan Smith. Bobagem.

Fato é que em onze anos numa posição propícia a jogos de poder e intrigas palacianas, o sr. Thatcher passou ao largo desses exercícios. E ainda deu uma contribuição espontânea à cartilha do enxugamento do Estado, tão cara à primeira-ministra: ele não dispunha de funcionários a seu serviço, não gerou despesa, não inventou nenhuma obra de caridade para se ocupar.

“Centavos não caem do céu, é preciso trabalhar aqui na terra para ganhá-los”, ensinou Margaret Thatcher durante a cruzada privatizante que transformou tão profundamente a Grã-Bretanha. Sugestão insolente enviada esta semana à comissão organizadora do cortejo fúnebre e exéquias: em respeito às ideias defendidas pela falecida, o enterro, que custará perto de 15 mil libras esterlinas (algo próximo a R$ 45 mil) deveria ser privatizado, numa operação calculada para dar lucro ao governo.

Dorrit Harazim é jornalista, O Globo
14 de abril de 2013

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