"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 4 de maio de 2013

VEM BARULHO PELA FRENTE

Barbosa lembra, pela primeira vez, que lei não prevê mais embargos infringentes desde 1990, conforme apontei aqui, imeditamente, no dia 13 de agosto do ano passado

 
 
O ministro Joaquim Barbosa, que discursou nesta sexta, em São José da Costa Rica, num evento sobre liberdade de imprensa, disse algumas coisas que considero obviamente erradas (ver post), mas também disse coisas certas, especialmente na entrevista que concedeu, fora de sua fala oficial. Lembrou, por exemplo, que os chamados “embargos de declaração”, apresentados pelas respectivas defesas dos mensaleiros, não têm o condão de mudar sentenças.
Eles servem para esclarecer dúvidas, apontar eventuais omissões, indicar possíveis contradições no acórdão, mas não anulam julgamentos, como querem os condenados. Mas isso é tatibitate do direito; é o óbvio.
 
A questão mais importante da fala de Barbosa se perdeu. E o principal diz respeito aos “embargos infringentes”. O ministro lembrou que a Lei 8.038, que regula os processos penais nos tribunais superiores, não trata do assunto. E essa lei, meus caros, é de 1990. Está em vigor há 23 anos!
 
Vamos com calma! O que são mesmos os “embargos infringentes”? Designam aquele expediente previsto no Artigo 333 do Regimento Interno do STF, segundo o qual, no caso de haver quatro votos divergentes, o condenado tem direito a um reexame de seu caso pelo plenário. Transcrevo o caput do Artigo e seu Parágrafo Único (em azul):
 
Art. 333. Cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma:
(…)
Parágrafo único. O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta.
 
Já faz tempo

Precisamente às 6h39 do dia 13 de agosto de 2012, publiquei aqui um artigo afirmando justamente que a Lei 8.038 tinh“Você, como advogado, é um bom professor de Deus” (essa foi a de que mais gostei). E essasa acabado com os embargos infringentes.
Por quê? Aprovada em 1990, ela não previa tal expediente. E É ESSA LEI QUE REGULA OS PROCESSOS PENAIS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES. Tanto é assim que, no STJ, por exemplo, não existe tal recurso.
 
Raramente apanhei tanto dos “especialistas” como nesse dia. “Estudou direito por acaso?” “Fez direito em qual faculdade?” “Vai agora querer dar aula para advogados?”  foram as pancadas suaves. Sim, Tio Rei assombrava o mundo (!?) afirmando a inexistência de embargos infringentes porque teve a ousadia de ler a Lei 8.038. Os jornalistas fiquem certos: ler leis e teoria política pode garantir mais furos jornalísticos do que ficar alugando a orelha para políticos.
 
Também escrevi aqui, bem mais recentemente, que não bastava ir apresentando embargos infringentes e pronto! O tribunal terá de decidir se eles são cabíveis ou não. E EU ENTENDO QUE NÃO SÃO PORQUE NÃO SE PODE PROCEDER SEGUNDO UM EXPEDIENTE QUE NÃO ESTÁ NA LEI. E a lei pode mais do que Regimento Interno do STF. Até a Constituição de 1967, o RI tinha força de lei. Na de 1988, não mais. Esses são os fatos. E o que disse ontem Barbosa em entrevista ao Jornal da Globo? Transcrevo (em azul):
 
“O tribunal ainda vai ter de decidir se eles [os embargos infringentes] existem ou não. Porque há uma lei votada pelo Congresso em 1990 na qual não se tem previsão da existência desses embargos. E é essa lei que rege há mais de 20 anos o processo penal nos tribunais superiores no Brasil”.
 
Era apenas um fato

Assim, a questão, então inédita que lancei, era tecnicamente procedente. Mais do que procedente: ela estava certa. Mais do que certa (porque não se trata de uma questão originalmente moral), era legal. Para o STF, o assunto é mais importante do que parece porque o tribunal estará, acreditem, adotando procedimento de exceção caso decida pela existência dos embargos infringentes, não o contrário. Por que isso?
 
Naquele mesmo dia 13 de agosto, um pouco mais tarde, no site Consultor Jurídico, Lênio Luiz Streck, procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, escreveu um longo artigo — bem mais técnico do que o meu, claro!, porque ele é especialista na área — sustentando justamente que não existem mais embargos infringentes. O texto está aqui. E ele traz um novo e poderoso argumento. Qual?
 
O próprio STF já considerou revogado ou sem efeito outro artigo de seu regimento que tratava justamente de embargos infringentes no caso de Ação Direta de Inconstitucionalidade porque a Lei 9.868 veio a disciplinar essa matéria e não abrigou tal expediente. Escreve Lênio (em azul):
 
Assim, é possível dizer que, nesse contexto, se o STF considerou não recepcionado (ou revogado) o RI (no caso, o art. 331) pelo advento de Lei que não previu esse recurso (a Lei 9.868), parece absolutamente razoável e adequado, hermeneuticamente, concluir que o advento da Lei 8.038, na especificidade, revogou o art. 333 do RISTF, que trata de embargos infringentes em ação penal originária (na verdade, o art. 333 não trata de ação penal originária; trata a matéria de embargos infringentes de forma genérica, mais uma razão, portanto, para a primazia da Lei 8.038, que é lei específica).
 
Sim, leitores, eu antevejo debate acalorado onde não deveria haver debate nenhum. Quero saber como é que alguns ministros conseguirão, sem que atropelem a ordem legal, justificar a existência ainda de embargos infringentes se:
 
a: eles não estão previstos na lei que rege os processos penais nos tribunais superiores;

b: uma lei pode mais do que um regimento;

c: o Regimento Interno do STF, desde 1988, não tem força de lei;

d: o próprio tribunal, em ocorrência idêntica (mas que dizia respeito a Adin, não a processo criminal), declarou o óbvio: a lei tornou sem efeito um artigo do regimento.
 
Já escrevi uma série de posts sobre o assunto. Agora, o presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, finalmente toca na questão pertinente. A simples aceitação de que os embargos ainda existem já significará que o Supremo estará atropelando a lei — além de negar-se a si mesmo.
 
Encerro

Os advogados sabem disso? Ora… Não há idiotas ali. Muito pelo contrário! É claro que eles sabem que os embargos infringentes foram revogados pela lei. Fizeram a bagunça que fizeram nos embargos de declaração, pedindo a anulação do julgamento, justamente para intimidar o tribunal.
Como sabem que levarão um “não” na testa, apostam que, no caso dos infringentes, o Supremo cederá — para não parecer radical.
Mal posso esperar pela argumentação de Lewandowski. Imagino qualquer coisa assim: “A Lei 8.038 não prevê, mas também não proíbe… E, vejam bem, são vidas humanas…”.
É isto: o berreiro criado no caso dos embargos de declaração é de tal sorte absurdo que o objetivo é mesmo arrancar do tribunal os embargos infringentes.
 
Por quê? Porque isso empurra as coisas sabe-se lá para quando. Caso se decida pela sua existência, aí será preciso ver se o tribunal os acata. Caso acate, terá de ser nomeado um novo relator, o novo procurador-geral da República terá de se inteirar do processo… Vai bater lá em 2014. E alguém lembrará: “Mas em ano de eleição?…”. O tribunal está diante de dois caminhos: um conduz à Lei 8.038, outro, à desmoralização.
 
04 de maio de 2013
Por Reinaldo Azevedo

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