"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 23 de julho de 2013

ROBERTO DAMATTA: "AS PESSOAS QUEREM UM GERENCIAMENTO PÚBLICO DECENTE".

 
“As pessoas escapam pelas malhas da reestruturação brasileira”
 
Roberto DaMatta

“As pessoas querem um gerenciamento público que seja realmente decente”, diz o antropólogo Roberto DaMatta sobre as manifestações que se espalharam por todo o Brasil no mês de junho. Autor de trabalhos como “O que faz o Brasil, Brasil?” (Rocco, 1986) e “Carnavais, malandros e heróis” (Rocco, 1997), que buscaram entender e revelar o comportamento do povo brasileiro, DaMatta contou para o Instituto Millenium suas impressões a respeito da estrutura policial brasileira e falou sobre possíveis ameaças ao Estado de Direito.
 
O antropólogo acredita que as divergências nas manifestações fazem parte de uma sociedade respaldada por uma democracia liberal. DaMatta destaca a necessidade de uma politização das relações pessoais e avalia o voto distrital como ferramenta útil em uma possível reforma política: “Quanto mais próximo de mim estiver o candidato, maior a minha participação política”.
 
Leia a entrevista completa
 
Instituto Millenium – No Brasil, ameaças ao Estado de Direito deixam de ser exceção em todas as esferas da sociedade. As recentes manifestações evidenciam que tanto a classe política quanto a sociedade civil e as forças policiais desrespeitam a lei, muitas vezes com o sentimento de que os fins justificam os meios. O senhor concorda com isso?

Roberto DaMatta - Comparando o Brasil com outros países, pode-se dizer que estamos respeitando o Estado de Direito. Ele é mais respeitado aqui que na Venezuela, provavelmente mais que na Colômbia e, certamente, que na Argentina.
Isso para não falar do Oriente Médio, Israel e Egito, e nem dos países árabes, onde há uma primavera da qual eu não quero cheirar as flores. A sociedade brasileira é democrática, liberal e competitiva, mas possui um sistema legal extremamente complicado.
O Brasil tem um legalismo muito grande, que é uma herança ibérica, de Portugal.
 
Imil – O senhor poderia explicar um pouco mais?

DaMatta – Veja, saímos da ditadura, mas continuamos com determinados mecanismos institucionais, políticos e legais daquela época, como as medidas provisórias, os decretos-lei e as PECs (Propostas de Emenda à Constituição).
Continuamos sem revogar muitas coisas, e, por esse ponto de vista, o Estado de Direito sempre esteve sob ameaça no Brasil. No entanto, essas ameaças são permanentes às sociedades democráticas, como já dizia Alexis de Tocqueville (1805 – 1859), em 1835, no livro “A democracia na América”, o primeiro trabalho de campo, in locu, de uma sociedade democrática.
Os Estados Unidos foram o primeiro país no mundo a ter uma experiência republicana sem aristocracia. É uma república que nasce sem aristocratas – burguesa de nascimento, e sem religião oficial.

Esses dois elementos, hierárquicos e aristocráticos, nós temos no Brasil, cuja história reuniu aristocracia com escravismo e um republicanismo muito mais teórico que prático, sem uma massa de pessoas capaz de praticá-lo.

Uma democracia liberal é um sistema político que está sempre correndo atrás de si próprio. Está sempre em crise, sempre se questionando
 
O que se observa hoje é que o Estado de Direito está funcionando no Brasil. Nesse momento estão ocorrendo conflitos entre brancos e negros na Flórida, nos Estados Unidos, e não significa que a lei não esteja funcionando lá. É o estado normal de uma sociedade liberal e democrática a competição de partidos políticos e ideias políticas, com grupos de extrema esquerda e extrema direita. Isso nunca será resolvido. Sempre haverá algum conflito, algo que tentará corromper o sistema e, do lado oposto, alguma polícia ou alguém para denunciar.
 
Imil – Mesmo durante as manifestações o senhor enxerga este pleno funcionamento?

DaMatta - Vivemos um drama social, segundo a formulação do antropólogo Victor Turner (1920 – 1983), dividido em quatro momentos.
Em um primeiro momento há uma montagem do drama, que foi o início das passeatas em São Paulo.
O segundo momento é o próprio drama, que foi quando as manifestações se espalharam pelo Brasil inteiro.
No terceiro momento acontece a interpretação dos significados do drama, quais são as partes envolvidas etc.
Por fim, no quarto momento as reivindicações do drama são ou não são atendidas. No caso brasileiro a tendência é, em geral, atender apenas parte das exigências e empurrar algumas coisas para debaixo do tapete. Essa não é propriamente a mesma experiência de outros países, que resolvem os problemas, por vezes, de maneira drástica.

Então a minha resposta é que o Estado de Direito está funcionando sim. Desde que se tenha em mente que uma democracia liberal é um sistema político que está sempre correndo atrás de si próprio. Está sempre em crise, sempre se questionando.

Ele deixa que exista dentro dele próprio movimentos que são contrários a ele, isso é, uma coisa que Tocqueville caracterizou muito bem.
Apesar de não ver uma ameaça ao Estado de Direito, acredito que as respostas aos movimentos podiam ser melhores. Analisando os sistemas com uma certa distância, eu, como um liberal, democrata, federalista, que defende as liberdades individuais e, sobretudo, um Estado de Direito em que se tenha liberdade e igualdade, acho que está funcionando.
 
Imil – A ausência de respeito ao modelo da ordem submetida ao Estado de Direito se perpetua dentro da estrutura policial brasileira por diversas razões. O senhor acredita na falência dos atuais modelos?

DaMatta - Essa pergunta você deve fazer ao Luiz Eduardo Soares, ele domina o tema. A questão policial brasileira é uma coisa muito louca, porque o Brasil não tem uma polícia somente. Há várias polícias que competem entre si, um sistema ideal para os criminosos.
Temos polícia municipal, estadual, federal, militar, polícia de fronteiras, polícia de portos, polícia aérea etc. Quanto mais polícias tivermos pior, por que a responsabilidade vai sendo empurrada de uma em uma. O mesmo acontece com o sistema legal: quanto mais tribunais tivermos para cada esfera da sociedade mais assuntos pendentes teremos.

Na semana retrasada, li que o chefe da inteligência da polícia que vigia o tráfico de drogas em São Paulo está preso. E o que eles vão fazer? A resposta que eu ouvi é que eles vão reestruturar a polícia.

Ora, hoje estou com 77 anos de idade e desde que comecei a enxergar o mundo público brasileiro, com uns 20 anos, vejo que Brasil está se reestruturando o tempo todo. As pessoas escapam pelas malhas da reestruturação!
O Judiciário foi reestruturado, a ditadura militar reestruturou tudo, a Constituição de 1988, felizmente, reestruturou tudo de novo. Reestruturamos o Estado com o governo FHC, recuperamos a moeda, e hoje estamos falando em reestruturar as forças policiais, o que já deveria ter sido feito há muito tempo.

Eu, como cidadão comum, não entendo esse negócio da polícia. É o que o Luiz Eduardo Soares chama de banda podre da polícia. Não tenho como responder com precisão essa questão, é necessário realizar um estudo.
O que eu posso fazer é chamar a atenção das pessoas para o número de polícias no Brasil. Precisamos discutir isso.
A grande questão da impunidade e da corrupção passa por uma politização, que não foi feita, das relações pessoais no Brasil
 
Imil – Na opinião do senhor, a que se deve o descrédito nas instituições do sistema de justiça e segurança? Pode-se resumir à questão da impunidade?

DaMatta - A grande questão da impunidade e da corrupção passa por uma politização, que não foi feita, das relações pessoais no Brasil. Se você não criticar esses diversos papeis que nós desempenhamos no palco da sociedade civil, no mundo público e no mundo íntimo, na casa e na rua, você jamais vai conseguir ultrapassar a corrupção que começa com um abraço do amigo, com um telefonema do sujeito que conhece o outro que vai resolver o “assunto X” para você, e que geralmente em um desses telefonemas vai exigir que se passe por cima ou por baixo de alguma lei.
Obviamente que não existe no mundo um país em que não haja simpatias pessoais, paixões entre pessoas, amizades, favores… O que eu estou dizendo é que nós ainda não nos politizamos. Nós criamos um sistema político aberto no qual qualquer um pode se candidatar e governos são formados de forma livre, no entanto, os papeis sociais, que são papeis mantidos pelo sistema público, pela sociedade através do Estado, são papéis que ainda não discutimos, não refletimos e não politizamos.
Se sou presidente e tenho uma vaga para ministro da Fazenda, quem vou nomear? Só posso escolher alguém do meu partido, amigos e familiares? Se há em outro partido alguém mais competente, por que não? Enquanto não politizarmos essas extensas redes de relações sociais ficará difícil transformar a política brasileira. Apoio-me em Max Weber (1864 – 1920) para afirmar isso. Weber nos mostrou que o espírito do capitalismo está construído em cima de uma ética que disciplinou de uma forma profunda e rigorosa as relações pessoais através da reforma protestante. A modernização da Alemanha tem duas etapas: a primeira, no século XV, com Lutero, e a segunda, feita a partir do século XVIII, na Prússia. A primeira criou nossa consciência de lugar no mundo, com o trabalho como vocação e a responsabilidade individual como valor. Ali surgiu a ideia de que o confessionário não é a salvação. Só o indivíduo pode salvar a si próprio. Essas são ideias pouco discutidas no Brasil.
 
Imil – O senhor é otimista quanto a essa politização das relações no Brasil?

DaMatta - Sou otimista. Vou me ancorar em Tocqueville novamente (risos). Ele diz que uma vez que a sociedade ultrapassa a fase aristocrática, a democracia é permanente, com tudo que ela tem de bom e tudo que tem de ruim: a massificação, o populismo, a sedução milenarista, os grupos radicais etc. Tudo isso está dentro da democracia e a única saída é a domesticação desse sistema. No caso do Brasil, essa domesticação vai certamente passar por uma discussão mais profunda sobre valores éticos, sobre a consciência de que os bens públicos nos pertencem e sobre o bom gerenciamento público.

O Instituto Millenium, de peito aberto, coloca em pauta problemas que a sociedade não pensou
Por isso, vejo importância em uma reforma política, principalmente em relação ao voto distrital. Quanto mais próximo de mim estiver o candidato maior a minha participação política.  
Na França, a cada quarteirão você vê um policial cuidando de um determinado liceu. Se há um policial específico para seu bairro, ele já conhece melhor as redondezas e pode prestar um serviço melhor.

O meu otimismo não diminui por causa dos problemas. Minha função é colocar os problemas como estou fazendo com você. É também o papel do Instituto Millenium, com o qual sempre mantive boas relações por causa disso.
Vocês, de peito aberto, colocam em pauta problemas que a sociedade não pensou. E digo que não pensou porque a sociedade brasileira digeriu o código liberal e democrático a partir de uma matriz aristocrática e escravocrata, que é a matriz história brasileira.
 
Imil – O senhor acha que a sociedade está mais atenta à necessidade de respeitar a lei? Estão denunciando mais as ações arbitrárias?

DaMatta - Não há duvida, hoje no Brasil há uma impaciência enorme. Razão pela qual aconteceram as passeatas de junho. Em entrevista ao “The New York Times” eu disse ser essa a revolta do bom senso. Ninguém estava pedindo uma reestruturação completa.
As pessoas querem um gerenciamento público que seja realmente decente. Que seja igual ao gerenciamento que a maioria das pessoas que estavam nas passeatad fazem das próprias vidas. Eu não gasto mais do que ganho, eu não contrato empregado que não trabalha e nem pago meus empregados acima do mercado.
Quando vemos que o cara que serve cafezinho no Senado ganha o dobro do que eu, professor titular com 50 anos de profissão, há algo de muito errado.

23 de julho de 2013
Roberto DaMatta

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