"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 3 de abril de 2012

HISTÓRIAS DO JORNALISTA SEBASTIÃO NERY

O jornalista, o poeta e o operário

BUDAPESTE – No gramado verde, todo enfeitado de amor-perfeito, três túmulos: do jornalista, do poeta e do operário. Os três morreram contra uma mentira. Na frente deles a maior e mais imponente sede, em todo o mundo, de um parlamento que não era parlamento, porque não havia democracia. Era a sede do ditatorial governo comunista entre 1948 e 90, com sua imperialista estrela vermelha lá no alto da cúpula da torre.

Bem diante do “Parlamento”, sobre o Danúbio sempre azul, a estatua, em mármore branco, do jornalista Kossuth Lajos, que liderou e morreu na revolução de 1848, contra o império austro-hungaro.

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OS TRÊS

À direita, sentado no chão desenhado de amor-perfeito, a figura Orweliana, triste e retorcida em bronze negro, do poeta Attila József que se atirou sob um trem em 1937, 32 anos, desesperado com a ditadura húngara.

Um pouco mais adiante, o túmulo simples e despojado, feito de terra, flores de cada dia e uma placa de metal, do operário Aldo Zatainak Emlekere, assassinado pelos soviéticos na invasão de 25 de outubro de 1956, comandada pelo gordinho sinistro Nikita Khrushev.

Um império estrangeiro, uma ditadura interna e uma invasão externa assassinaram um jornalista, um poeta e um operário. Como diz bem a presidente Dilma,“a vida não é fácil, nunca foi”. Sobretudo para quem luta.

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HUNGRIA

Por muito pouco não fui testemunha da tragédia húngara de 25 de outubro de 1956. Cheguei aqui exatamente um ano depois. Os buracos dos tanques soviéticos ainda estavam por toda parte, nas paredes e nas almas. Vindo de Moscou, passei pela Tchecoslováquia, Polônia, Bulgária, Romenia e Iugoslavia, sacudidas pelo “Relatório de Khrushev”, de junho de 56, denunciando os crimes de Stalin.

Os húngaros tinham, atravessado na garganta, o assassinato de Rajk, seu ministro do Exterior, acusado por Stalin de colaborar com Tito. Janos Kadar, dirigente do PC, amigo de Rajk, não morreu mas foi para a cadeia. Rakosi, o líder do partido, que assumiu o governo em 1948 apoiado pelas tropas soviéticas, era um sanguinário. Matava para ficar sozinho no poder.

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KHRUSCHEV

Quando Khrushev denunciou Stalin, a Hungria se levantou e exigiu a saída de Rakosi, que manteve o comando do partido e entregou o governo a Imry Nagi. Era tarde. A fábrica “Czepel”, menina dos olhos dos comunistas, a “Ilha Vermelha”, porque em uma pequena ilha do Danúbio, com 10 mil operários, principal base política do PC, criou uma comissão operária e o processo disparou.

Em 24 horas já haviam sido criadas milhares de “comissões operárias” rebeldes. A universidade foi para as rádios e jornais. Imry Nagi convocou os antigos socialistas e sociais-democrátas para comporem um governo de unidade nacional. A estátua de Stalin, imensa, foi derrubada.

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MASSACRE

De madrugada, os russos, chamados em segredo por Rakosi, atravessaram a fronteira e literalmente fuzilaram as esperanças e a alegria do povo que, aos milhares, comemorava a liberdade nas ruas. Foi um massacre. Milhares de mortos e presos, A abertura de Khruschev era só para os russos (e logo mais nem isso).

Nagy cometeu a ingenuidade de ir ao comando militar soviético para negociar. Foi seqüestrado e levado para Moscou. Dois anos depois, a URSS informou que tinha sido fuzilado. Kadar, saído da cadeia, assumiu o poder.

Lembro bem de minha emoção, em 1957, ao ver os rombos enormes dos canhões soviéticos nas paredes da fábrica “Czepel”, a “Ilha Vermelha”. A Hungria jamais esqueceu ou perdoou. O motorista de táxi, quando lhe disse “spaciba” (“obrigado” em russo), ficou irado, na porta do hotel:

- “Spaciba, no! Spaciba, ruski”(Spaciba, não, spaciba é russo!)

É o ódio, até hoje, à ditadura comunista e à invasão russa.

(Toda essa historia está em minha “A NUVEM”, editora Geração).

03 de abril de 2012
Sebastião Nery

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