"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 6 de abril de 2012

QUANDO A BESTA DESPERTA


Uma das figuras mais marcantes dos primeiros tempos do Jornal da Bahia (aquele mesmo que consta na história da imprensa brasileira como o herói de uma luta sem tréguas contra o caudilhismo de Antonio Carlos Magalhães) era um desenhista francês de talento invulgar. Aos 15 anos de idade, quando estreei naquele jornal formador de gente, o francês fazia-se conhecer em toda Salvador como chargista, dotado de uma percepção extraordinária para captar o espírito baiano e satirizar as mazelas políticas. Convocado para a guerra da Argélia, ele teve o conforto de assistir à reação (inútil, no fim das contas) dos baianos, que não queriam vê-lo partir.

O artista voltou são e salvo do conflito, sem ter disparado nem recebido um tiro sequer. Viveu alguns anos na Bahia e, de volta à França, fez uma carreira notável como desenhista de imprensa e de álbuns, além de cineasta, ator e contista. Eu o conheci de bem perto, antes e depois. É que permaneceu amigo de muitos brasileiros, que costumavam frequentar o seu apartamento em Paris, principalmente aqueles que ele considerava a “esquerda criativa”.

Prefiro não citá-lo nominalmente: já faleceu, não há quem responda por ele. Mas eu o evoco aqui porque começam a aparecer na imprensa e em relatos orais pequenas histórias de amigos franceses de espírito convivial e libertário, mais tarde tornados simpatizantes enrustidos, às vezes veementes porta-vozes da pior direita francesa.

Quando o desenhista faleceu em 2008, fazia muitos anos que eu não mais o visitara, mas estava bem a par de sua conversão às hostes da intolerância étnica e xenofóbica. Esta foi uma das grandes decepções de minha vida, logo eu que comungo da bonomia de “Europa, França e Bahia”, que lá estudei, que cultivo a língua e que ainda tenho sinceros amigos franceses.

Fantasia colonialista

Esta história comparece agora a propósito do massacre de crianças judias, um rabino e militares muçulmanos por um extremista francês. Mas principalmente porque a imprensa, não apenas a nossa, mas uma parte da imprensa parisiense levanta a questão do “mal-estar” da consciência francesa. Esta, a despeito de uma história gloriosa de lutas e discursos sobre a fraternidade e a liberdade, ainda parece cultivar, no mais profundo recesso de si mesma (“La France profonde...”), os sentimentos horrendos que, no passado, levaram à rejeição e ao extermínio do Outro – o judeu, o árabe, o estrangeiro.

A realidade é que nem sempre Paris foi a “festa” de que falava Hemingway. Quando o governo de Vichy, chefiado pelo marechal Pétain, extinguiu a Terceira República Francesa em 1940, o grande ponto anti-humano do acordo com a Alemanha nazista era a deportação de todos os judeus franceses para os campos de concentração alemães.
A grande maioria da população era colaboracionista, cúmplice daquele “mal-estar” civilizatório, que não acabou com o fim da Segunda Guerra, nem foi realmente redimido pela Resistência Francesa (iniciativa de comunistas, aliás), pois os sentimentos odiosos ressurgem sempre que se lhes dá a oportunidade. Em seu livro sobre o “estrangeiro”, a brilhante analista Julia Kristeva sustenta não haver pior país para o estrangeiro do que a França.

Evidentemente, não é assim que se sente ou mesmo pensa o estrangeiro que vive em Paris como estudante, turista ou exilado. Pelo menos, não inicialmente ou nunca quando se navega na superfície das coisas.O buraco é bem mais embaixo: no fundo dele mora a crença no universalismo iluminista, que mobiliza não apenas a força de trabalho do homem, mas também os recursos próprios à sua conversão ao modelo civilizatório do Ocidente, indispensável a um modo de produzir economia e cultura que sempre implicou saque, domínio e extermínio do Outro. A isto se pode chamar de “monoculturalismo paneuropeu”, ou seja, a civilização pensada no singular.

Essa civilização é oferecida por essa “Paneuropa” como um valor universal, como um Evangelho (“boa notícia”, em grego) ao resto do mundo desde o século 15. Todo e qualquer saber ou toda e qualquer religião que se queira universal tem a sua “boa notícia” a ser difundida a ferro e fogo às civilizações refratárias. Por isso, o fenômeno histórico do colonialismo, ao lado do extermínio físico e da violência predatória, fez-se sempre acompanhar da validação de uma forma única de conhecimento, em detrimento de quaisquer outras.

A respeito disso, o sociólogo português Boaventura Santos é taxativo:
“O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranhas porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos”.
Paneuropa não diz respeito, portanto, à dimensão geográfica do continente europeu, e sim a seu sistema-mundo cultural, um sistema de decisões universalista etnicamente orientado, desde o século 15, pela fantasia colonialista de uma unidade absoluta do sentido e refratário à admissão de outras etnias e outros saberes.

Consciência emburacada

O curioso é que esse sentimento civilizatório persiste apesar da conscientização global de que o Ocidente vem perdendo há muito tempo a sua centralidade simbólica e a sua hegemonia política. Atualmente, até mesmo o francês Alain Touraine, sociólogo festejado pela centro-direita política, admite que os europeus já não podem reivindicar, como no passado, o monopólio da ciência, da razão, da liberdade e da tolerância:
“A Europa foi tudo isso e seu contrário, em particular no espírito de conquista, de destruição e de construção de ideologias racistas”. Assim, “é preciso ser mesmo cego para não ver que a Europa, onde nasceu esse tipo de modernidade, perdeu terreno, anteriormente, para países como o Japão, e hoje perde para a China, onde se encontram os melhores exemplos de objetos e formas de vida modernas”.

Na realidade, nada disso é muito novo. O fenômeno é progressivo desde a segunda metade do século 20, quando as antigas colônias europeias se tornaram estados independentes, e quando começou a estiolar-se a evangelização que legitimava o controle imperial.
A humanitas paneuropeia hoje declina de fato. Tenta ressurgir intelectualmente aqui e ali, sob as capas de uma pretensa universalidade dos direitos humanos, ou então sob as modalidades violentas do fundamentalismo ou do racismo. Nos grotões nacionais, nos buracos profundos da consciência ressentida, a perda do poder simbólico é imaginariamente compensada pela violenta rejeição do Outro.

Esse sentimento de poder civilizatório está latente em cada cidadão das antigas potências coloniais. Foi ele que, de repente, acordou naquele “meu” francês, assim como no francês do outro, pouco importam as diferenças de classe ou de educação. Cultivada ou ignorante, a consciência emburacada teme a proximidade maciça do diferente, estrangeiro, do imigrante, do Outro, despertando ocasionalmente a besta adormecida do provincianismo cego. Foi assim com Pétain – aliás homenageado pelo socialista François Mitterrand –, é assim hoje. A crise econômica ajuda a acordar a besta. É só aguardar os resultados das próximas eleições francesas.

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06 de abril de 2012
[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]

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