"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 11 de maio de 2012

FILHOS DA GUERRA SUJA


OS ÓRFÃOS ROUBADOS NA DITADURA ARGENTINA
PARTE  1
por Francisco Goldman

No dia 24 de novembro de 1976, oito meses depois de a Junta Militar tomar o poder na Argentina, desencadeando a Guerra Suja que introduziu no mundo o termo los desaparecidos, uma casa num bairro sossegado e de ruas arborizadas em La Plata, a 65 quilômetros de Buenos Aires, foi alvo de um ataque. A investida-surpresa, que envolveu 200 homens das Forças Armadas por terra, além de bombardeio e rajadas de metralhadora pelo ar, durou quatro horas. María Isabel Chorobikde Mariani (conhecida como Chicha), professora de história da arte que morava a alguns quarteirões dali, ouviu tudo, assim como outras pessoas na cidade inteira. No dia seguinte, Chicha descobriu que a casa atacada era de seu filho. Daniel Mariani, economista, e sua mulher, estudante de pós-graduação, eram membros do grupo guerrilheiro de esquerda conhecido como Montoneros. Naquele dia, tinham estado na casa com a filha de 3 meses de idade e outros três militantes. Os vizinhos chamavam o prédio de “Casa dos Coelhos”, porque as pessoas que moravam lá criavam e vendiam coelhos, mas o negócio era uma fachada; o porão abrigava a gráfica que imprimia o jornal clandestino Evita. Os militantes tinham apenas armas leves. “Deveriam ter se rendido”, disse-me Chicha. Em vez disso, insistiram em resistir.

Daniel, soube-se depois, momentos antes do ataque tinha viajado para participar de uma reunião em Buenos Aires. Sua mulher, Diana Teruggi, foi assassinada no pátio. Ela havia escondido a filha, Clara Anahí, dentro de uma banheira, coberta com toalhas. Depois do ataque, um soldado encontrou o bebê e levou a menina para a rua. Perguntou ao comandante da operação, coronel Ramón Camps, o que fazer com ela. Dois policiais estavam sentados num carro ali perto e Camps disse ao soldado que entregasse o bebê para eles. Trinta anos depois, uma vizinha contou para Chicha que tinha visto um dos policiais colocar Clara Anahí dentro de uma ambulância. Quando o policial percebeu que ela estava olhando, gritou para que voltasse para dentro de casa, senão iria matá-la.

Assim que soube que sua neta também estava na casa, Chicha começou a procurar por Clara Anahí, buscando informações em delegacias, hospitais, juizados de menores e igrejas. Durante meses de busca, não encontrou nenhum vestígio da criança e ninguém disposto a discutir a questão. Até as amigas mais próximas de Chicha passaram a atravessar a rua para evitá-la. Por fim, uma mulher que trabalhava num Juizado de Menores teve pena. “Está muito sozinha, señora”, disse ela. Sugeriu que se juntasse a outras mulheres que estavam em busca de crianças desaparecidas e lhe deu o número de telefone de Alicia de la Cuadra. Alicia, cuja filha estava grávida quando “desapareceu”, falou para Chicha acerca do grupo ao qual ela pertencia – as Madres de Plaza de Mayo –, criado em abril de 1977, por mães que procuravam filhos detidos pelo regime militar. As Madres reuniam-se diante do Palácio Presidencial em Buenos Aires toda quinta-feira para fazer uma passeata em torno da praça, num protesto silencioso, usando lenços brancos bordados com os nomes dos filhos desaparecidos. Chicha participou de um protesto com as Madres e logo formou outro grupo, com Alicia e outras dez Madres que também procuravam netos desaparecidos. Ficaram conhecidas como Abuelas de Plaza de Mayo.

O filho de Chicha, que levara adiante sua vida de militante, foi morto numa rua de La Plata oito meses depois da morte da mulher. Anos depois, o marido de Chicha, um regente de orquestra sinfônica, continuava a ter frequentes alucinações, nas quais o chão de sua casa ficava encharcado de sangue. Passou a maior parte da vida na Itália e morreu em 2003. Chicha ficou em La Plata e dedicou-se a descobrir o paradeiro de Clara Anahí.

Durante o Processo de Reorganização Nacional – denominação pomposa que a Junta Militardeu ao período em que governou, de 1976 a 1983 – desapareceram nada menos de 30 mil pessoas, na maioria jovens argentinos. O governo justificou sua tática como parte de uma guerra contra uma insurreição revolucionária promovida por “terroristas subversivos”, embora o primeiro líder da Junta, o general Jorge Rafael Videla, definisse “terrorista” como “não só uma pessoa que instala bombas, mas aquela cujas ideias são contrárias à civilização cristã ocidental”. As forças de segurança da Junta iam ainda além dessa missão abrangente, quando tinham em mira dissidentes que deviam ser eliminados. Sessenta estudantes secundaristas do Colegio Manuel Belgrano, em Buenos Aires, desapareceram só porque ingressaram no conselho estudantil do colégio. Vítimas eram sequestradas quando desciam do ônibus, quando voltavam do trabalho ou vinham da escola para casa, ou em ataques-surpresa no meio da noite contra residências particulares e esconderijos onde membros dos grupos de guerrilha ou de organizações sindicais e estudantis banidas moravam escondidos. Os sequestrados eram levados para centros de detenção clandestinos, onde a maioria era torturada e morta.

Cerca de 30% dos desaparecidos eram mulheres. Algumas eram sequestradas com os filho pequenos, e talvez 3% estivessem grávidas, ou engravidaram na prisão, em geral por causa de estupros cometidos pelos guardas e torturadores. Prisioneiras grávidas eram rotineiramente mantidas vivas até que dessem à luz. “A depravação do regime alcançou o auge com as prisioneiras grávidas”, escreveu Marguerite Feitlowitz, na época professora em Harvard, em seu estudo pioneiro sobre o pesadelo argentino, A Lexicon of Terror: Argentina and the Legacies of Torture. Uma ex-detenta contou para Marguerite: “Nossos corpos eram fonte de um fascínio especial. Diziam que meus mamilos inchados eram um convite para a ‘vara’” – a vara de ferro eletrificada, própria para tanger o gado, usada na tortura. “Eles representavam uma combinação francamente repulsiva – a curiosidade de meninos e a excitação violenta de homens adultos.”

Às vezes, as mães podiam amamentar seus filhos recém-nascidos, pelo menos esporadicamente, por alguns dias, ou até semanas, antes de os bebês serem tomados delas e as mães serem “transferidas” – enviadas para a morte, na famigerada nomenclatura da Guerra Suja. Um método comum de “transferir” era injetar drogas nas mulheres e empurrá-las pela porta de um avião nas águas do rio da Prata ou do oceano Atlântico. Segundo grupos de direitos humanos, pelo menos 500 bebês recém-nascidos e crianças pequenas foram separados de pais desaparecidos e, com suas identidades suprimidas, foram entregues para casais de policiais e militares sem filhos e outros favorecidos pelo regime.

Faz muito tempo que se supõe que esses roubos de bebês resultaram, em parte, do conluio entre militares e setores da Igreja Católica, que deram sua bênção aos voos da morte, mas não ao assassinato de crianças pequenas ou ainda não nascidas. O Processo de Reorganização Nacional queria definir e criar “argentinos autênticos”. Os filhos de subversivos, explicou Marguerite, eram tidos como “sementes da árvore do mal”. Talvez por meio da adoção tais sementes pudessem ser replantadas num solo sadio.

Chicha Mariani e as Abuelas de Plaza de Mayo definiram como seu propósito encontrar aquelas crianças adotadas e devolvê-las para o que houvesse restado de suas famílias biológicas. No final da década de 70, porém, a técnica do exame de DNA não estava plenamente desenvolvida e as Abuelas não tinham um modo seguro de identificar as crianças desaparecidas, sobretudo as que haviam nascido em centros de detenção. Às vezes o simples relance de um rosto de criança na rua fazia disparar seus corações. Crianças eram fotografadas na saída da escola ou eram seguidas a caminho de casa. Uma avó chegou a se fazer passar por empregada doméstica na casa de um casal que ela achava que podia estar criando uma criança roubada.

No início dos anos 80, geneticistas de universidades e de centros de pesquisas em hospitais nos Estados Unidos, alguns deles exilados da América Latina, começaram a manifestar interesse na busca empreendida pelas Abuelas. Em 1984, um ano depois do final do regime militar, Mary-Claire King, geneticista na Universidade da Califórnia em Berkeley, viajou para Buenos Aires para trabalhar com a geneticista argentina Ana María di Lonardo. Juntas, criaram o Índice dos Avós, um exame do antígeno leucócito humano, capaz de identificar um vínculo genético entre os avós e os netos. Mais adiante, naquele mesmo ano, o exame genético foi usado pela primeira vez para identificar um filho de desaparecidos políticos. A menina Paula Logares tinha sido sequestrada com os pais, em 1978, quando tinha 23 meses de vida. O policial que a criou – e que provavelmente estava envolvido na morte de seus pais – registrara a data de nascimento da menina como dois anos posteriores à data real. (Paula, mais tarde, foi devolvida à sua avó biológica.) As Abuelas começaram a pressionar o governo para criar um banco de dados genéticos nacional a fim de armazenar o perfil genético das famílias que procuravam crianças desaparecidas e, em 1987, foi fundado o Banco Nacional de Dados Genéticos, ou BNDG.

Chicha Mariani foi a presidenta das Abuelas até 1989 e, durante sua gestão, cerca de sessenta netos foram identificados e reintegrados a suas famílias biológicas. “Isso sempre nos deixava mais ou menos tão felizes como se tivéssemos encontrado nossos próprios netos”, me disse ela.

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