"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 24 de maio de 2012

MAIS TELEFONES EM CHICAGO...

 
Roberto DaMatta

Há mais telefones em Chicago do que em toda a América Latina! Ouvi essa frase do meu saudoso amigo Mário Roberto Zagari naquela São João Nepomuceno dos anos 50. Hoje, a tal América Latina tem milhões de telefones e o Brasil produz mais carrocerias de ônibus do que os tais Estados Unidos.

Houve um tempo no qual a Europa e os Estados Unidos concebiam-se como sociedades concluídas. Havia um início do mundo civilizado na Grécia e, depois dele, havia um mundo pronto e acabado – perfeito na sua autocomplacência etnocêntrica – naquela região do Hemisfério Norte em cujo oceano naufragou o Titanic – o maior e o mais avançado navio de passageiros que o mundo jamais havia visto.

Quando meu amigo me passou essa “informa-lição”, eu fiquei tão assustado que não a esqueci. E aqui estou a dizer ao leitor que sou de um tempo mais ou menos antigo; de um tempo no qual havia uma cidade americana um tanto estranha. Essa Chicago que numa música é cantada como uma cidade especial; noutra é uma urbe cambaleante e é também um berço de bandidos que, no entanto, são presos.

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Se você chegou (Deus sabe como) a uma certa idade (que é sempre uma idade incerta), é impossível não ler os jornais sem se lembrar de José do Egito (filho de Jacó-Israel e Raquel), o decifrador dos sonhos do faraó e, ele próprio, um sonhador. Pois como entender a lógica dos sonhos sem sonhar?
Eis o sonho de José. “Fazíamos feixes no campo e, de repente, o meu feixe ergueu-se e ficou de pé, enquanto que os vossos puseram-se à volta e prostraram-se diante dele.” Os irmãos interpretaram imediatamente o sonho de José. Esse sonho, disseram, significa que “tu reinará sobre nós, te tornarás nosso senhor?”
Como diz Thomas Mann, é comum não compreendermos a nossa história. A não ser como sonhadores dispostos a perdoar, como Jos.
O filho favorito de Jacó despertava uma inveja incontida nos seus irmãos. E ele, ingênuo, falava muito e dividia os seus sonhos. Pior, ou tão grave quanto isso, era ser o filho preferido de Jacó. O texto bíblico explica a preferência, acentuando que José era filho da velhice de Jacó. O livro de Thomas Mann, José e Seus Irmãos, vale-se do espírito da narrativa – do poder conferido aos sonhos escritos; a isso que chamamos de “literatura”, para explicar que José era um “sonhador”. O que atraía o amor do seu pai era a sua capacidade de construir um mundo de sonhos.
De fato, mais adiante, quando José é visto pelos irmãos já possuídos pelo ressentimento (esse irmão mais novo da inveja) e decididos a eliminá-lo, um deles diz: “Eis que chega o sonhador”. (Gênesis, 37:2-18)

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Sabemos como os irmãos de José jogaram-no numa cisterna fazendo-o morrer para sua tribo e família e, em seguida, como foi encontrado por mercadores que seguiam em direção ao Egito (que, naquele tempo, tinha mais templos do que todo mundo).

Mesmo socialmente morto, vendido e comprado, José continua possuído por sonhos. Recusa-se a ser a fantasia sexual da mulher de Putifar, o mordomo eunuco do faraó. É falsamente denunciado e, preso, decifra os sonhos do padeiro-mor e do copeiro-mor da Corte, encarcerados por corrupção. Sua interpretação é perfeita: um dos funcionários será salvo; o outro, decapitado.

Percebe-se que o Egito antigo sem telefones era distinto deste Brasil lotado de milhões de celulares. Pois, entre nós, quando se trata de punir funcionários graúdos, cujos sonhos de enriquecimento ilícito ampliam exponencialmente suas fortunas, não há faraó que os condene. Nossos sonhos apenas dizem: nada lhes vai acontecer nem em três dias nem em 30 anos!

Mas no velho Egito havia condenação como havia recompensa. E foi assim que José, graças ao ministro salvo, chegou a ter contato direto com o rei deus obcecado por dois sonhos recorrentes que, na verdade, como José explicou, não eram dois, mas apenas um e denso sonho que não o deixava dormir.

Reunido com sua corte na Brasília do seu tempo, o faraó conta seus sonhos indecifráveis. Sete vacas gordas são devoradas por sete vacas horrorosas. Sete espigas maduras se curvam diante de sete espigas feias e secas pelo vento.

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José não é nenhum economista, pois Deus – sempre misericordioso – só veio a inventar a economia alguns séculos depois, quando a exploração do trabalho atingiu o seu cume, criando espigas cheias e belas que comiam sem parar as magras e feias. Mas com a precisão e a autoridade cortante de um Mario Simonsen ou de um Delfim Netto, ele não hesita em falar o que lhe cabe.

José diz mais ou menos o seguinte – deixe a preguiça e veja em Gênesis 41-47: toda fartura em excesso é uma bolha. Sete anos com grandes ofertas serão seguidos de sete anos de penúria. O rei deus deve evitar que a fartura se transforme em bolhas. A oferta deve ser domesticada como um meio de prevenir os anos de privação. José foi o primeiro ministro do planejamento veraz e competente da História. Foi um sonhador. Sonhou que era possível conciliar riqueza e pobreza, fartura e penúria, cargos públicos e honra.

Mais que isso, percebeu a dificuldade de interpretar sua própria história, pois, como diz Thomas Mann, é comum não compreendermos a nossa história. A não ser como sonhadores dispostos a perdoar, como José.

24 de maio de 2012
Roberto DaMatta

Fonte: O Estado de S. Paulo

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