"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 16 de maio de 2012

O VÍCIO PELA VIRTUDE

Carlos Alberto Sardenberg

Você está no peso ideal, colesterol abaixo de 100, pressão 12 por 8, boa alimentação,exercícios em dia e – quer saber? – você está em desvantagem. Não tem como melhorar. Suponha que você fique doente. O que o médico poderia
recomendar para aperfeiçoar sua qualidade de vida? Bem diferente se você estivesse gordinho e meio paradão. Haveria ampla possibilidade de ação e melhoria.

Foi com esse tipo de lógica que o ministro Guido Mantega andou demonstrando uma suposta superioridade brasileira no cenário de crise mundial. Lembrou, por exemplo, que em muitos países a taxa de juros está próxima de zero, de modo que seus bancos centrais, coitados, não dispõem de poderoso instrumento de estímulo à economia. Já o Banco Central (BC) brasileiro,que pilota a maior taxa de juros do mundo, teria ampla possibilidade de reduzi-la várias vezes.

Assim, um dos piores vícios brasileiros, o juro descabido, se transforma em virtude. Mas, se essa lógica faz sentido, também faria sentido derivar daí uma recomendação de política monetária: que os bancos centrais mantivessem juros elevados para poder reduzi- lo sem caso de necessidade. Eis sonos levaria a uma contradição em termos: na crise, os juros não poderiam ser reduzidos porque se perderia o instrumento.

Vai que o BC brasileiro coloca a taxa de juros a zero e a economia continua exigindo mais estímulo, o que fazer? Parece absurdo, é absurdo, mas é isso o que nos estão dizendo: teria sido enorme sabedoria manter os juros mais altos do mundo.
Pode?! Não é incrível que apareça esse tipo de questão em meio a um momento difícil e complexo da economia global?

É claro que os bancos centrais que já reduziram os juros não têm mais o que fazer nessa direção. Mas os juros no chão continuam fazendo o serviço de baratear consumo e investimentos.
Portanto, vamos reparar: em qualquer circunstância, os juros brasileiros constituem vício. E formam o sintoma mais visível de diversas doenças da economia local, incluindo dívida pública elevada e com rolagem curta, gasto público exagerado e baixo nível de investimento.

Aplicaram a mesma manobra mental aos compulsórios – dinheiro que os bancos devem deixar depositado no Banco Central -, também os maiores do mundo aqui, no Brasil. Com tanto dinheiro retido, quando surge algum problema de liquidez, como falta de dinheiro e crédito na praça, o nosso BC pode liberar recursos do compulsório.

Do mesmo modo que na lógica maluca dos juros altos, o “correto” seria deixar o compulsório elevado para poder reduzi-lo quando ocorresse algum problema. Outro vício que virou virtude.
Reparem: compulsório é dinheiro retirado do sistema financeiro, que tem reduzida sua capacidade de emprestar para empresas e pessoas. É vício, sintoma de uma economia doente que não pode conceder crédito abundante.

Olhando bem, juros altos e compulsórios elevados são duas faces do mesmo vício. Decorrem das necessidades de um governo gastador,que avança no mercado para se financiar, e do baixo nível de investimentos. Dito de outro modo: com juros baratos e mais dinheiro disponível, o crédito cresceria e ampliaria a capacidade de investimento e de consumo de empresas e pessoas. E isso traria mais inflação, porque a oferta de bens e serviços ficaria muito abaixo dessa demanda turbinada.
Sim, é verdade que,em muitos países, juros muito baixos, por muito tempo, e muito dinheiro disponível levaram a bolhas e excessos de gastos públicos e privados. O momento, portanto, é de maior prudência.

Não decorre daí que é melhor ter crédito caro e limitado. E, se for para escolher o problema, é melhora abundância do que a falta de crédito.
Vai ver que a redução efetiva e duradoura dos juros depende de outros fatores além da determinação da presidente
Vamos reparar, portanto: o mundo está num período de crescimento baixo, com inflação também baixa e juros no chão. Que, neste momento, o Brasil tenha crescimento muito baixo e, ainda assim, juros altos e inflação acima da meta é um baita sinal negativo.
Como isso pode ter acontecido? Quais são as causas dessa anomalia?

Em vez de responder a essas questões com uma política consistente, o governo resolve atropelar bancos, incluindo os públicos, para forçar a queda dos juros, na marra. Parece que os juros são altos por causa da ganância dos bancos e porque os governos anteriores, incluindo o de Lula, não tinham vontade de reduzi-los.

Reparem: até a presidente Dilma iniciara campanha, os bancos públicos cobravam juros “normais”, quer dizer, parecidos com aqueles praticados nas instituições privadas. De um dia para outro, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal descobrem que podiam cobrar bem menos.
Quer dizer que antes estavam inteiramente errados? Ora, sendo bancos públicos, era preciso que viessem a público para explicar por que não reduziram essas taxas antes e ficaram tanto tempo punindo o público com juros excessivos. Nem os bancos, muito menos o governo, deram as explicações.

Vai ver que a redução efetiva e duradoura dos juros depende de outros fatores além da determinação da presidente. E, se for isso, todo esse barulho pode levar a duas consequências. Ou essa derrubada estaria mais no barulho do que na realidade dos clientes (muitos já reclamando das condições difíceis para obter as novas taxas). Ou os bancos públicos vão mesmo derrubar suas taxas de modo amplo e geral, o que os levará, no mínimo, a uma perda de rentabilidade e, no limite, a prejuízos.

Não nos esqueçamos: Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, conduzidos politicamente, já quebraram mais de uma vez. Só o governo FHC gastou cerca de R$ 15 bilhões, dinheiro nosso, dos contribuintes, para salvar esses dois bancos.

16 de maio de 2012
Carlos Alberto Sardenberg

Fonte: O Estado de S. Paulo

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