"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 27 de julho de 2012

13 DE DEZEMBRO, O DIA DO AI-5


PARTE 3

A fuga do Opala preto

No exato instante em que Costa e Silva abria a reunião, tendo o cuidado de colocar dois gravadores em cima da mesa de mogno, o AI-5, que oficialmente não existia, já tinha feito sua primeira vítima. O jornalista Rogério Monteiro, militante do Partido Comunista Brasileiro, assessorava os deputados estaduais Fabiano Vilanova e Alberto Rajão, ambos do Partidão, na ilegalidade, mas eleitos pelo MDB do Rio de Janeiro. Às 14h30 Monteiro participaria de uma reunião na casa da deputada Yara Vargas, em Copacabana, numa tentativa de convocar a Assembléia Legislativa extraordinariamente, já que a casa estava em recesso de fim de ano. Ao meio-dia, Rogério Monteiro desceu as escadarias da Assembléia Legislativa com o general Olympio Mourão Filho, que rompera com a revolução de 1964 e tornara-se célebre com a frase "Em matéria de política, sou uma vaca fardada". Mourão seguiu em direção à Biblioteca Nacional. Monteiro foi para o lado do Teatro Municipal.

Na calçada da Rua 13 de Maio, ao lado do teatro, alguém chamou o jornalista - Rogério Monteiro fingiu não ouvir e continuou a caminhar. Dois agentes da polícia correram em sua direção. Exigiram que ele entrasse num Opala preto. "Naquele instante imaginei: não posso entrar nesse carro. Já que a prisão é inevitável, vou provocá-la na frente da Assembléia Legislativa", lembra Monteiro. "Corri, comecei a gritar, falava meu nome em voz alta. Todo mundo que estava por perto ouviu. Garanti minha sobrevivência." Ele foi levado para o quartel Caetano de Farias, onde permaneceu até as 23h30. Dali, foi transferido para as instalações do Dops. No fim da noite, chegou à sua cela o também jornalista Oswaldo Peralva, diretor de redação do Correio da Manhã. "Peralva, que prazer!", disse Monteiro. Peralva irritou-se com o comentário até que Monteiro pudesse explicar o que significava o "que prazer". "Era o prazer de saber que tinha alguém para conversar na prisão, um fraternal amigo." Depois de Peralva chegaram o jornalista Hélio Fernandes e Carlos Lacerda. No dia seguinte, à noite, seria a vez de o ator Mário Lago ingressar no Caetano de Farias.


O abraço de Mário Lago e Lacerda

Mário Lago chegou à cadeia ainda maquiado e com a calça de veludo de um de seus personagens. No sábado 14, seria a estréia da peça Inspetor, Venha Correndo no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Era uma comédia em que Lago fazia o papel do inspetor. Não um, mas dois inspetores foram buscá-lo no teatro antes do início do espetáculo. Mário Lago atravessou a platéia, atônita, ao lado dos agentes policiais. Um deles era o censor que, na véspera, assistira ao ensaio final para a censura. Ao chegar em casa, depois da sessão para os censores, Mário Lago escutou ao lado da mulher, na TV, o anúncio do AI-5. Comentou: "O caldo ferveu, vem chumbo grosso por aí". Na manhã seguinte, ela o aconselhou a pedir o cancelamento do espetáculo alegando não estar se sentindo bem. Lago não quis. Ao chegar ao quartel Caetano de Farias, ele foi informado de que ali já se encontrava o ex-governador Carlos Lacerda, seu inimigo há décadas. "Não falo com ele", disse Lago. Lá dentro, na cela, Lacerda fazia a mesma promessa. "Não falo com ele." Os dois trataram de descumprir a promessa vã. Ao se encontrarem, o que sobrou foi um fraternal abraço e um comentário de Carlos Lacerda: "Estamos no mesmo barco agora".


O dia dos cegos

No mesmo barco estava a redação do Jornal do Brasil, na Avenida Rio Branco, 110. Às 22 horas, o editor-chefe do jornal, Alberto Dines, reunira-se com alguns de seus editores mais próximos para ouvir o AI-5 no alto-falante sintonizado na Rádio Jornal do Brasil. Ao final do anúncio, Dines saiu da sala, uma das únicas da redação com ar-condicionado, e subiu para falar com o dono do jornal, Manoel Francisco Nascimento Brito. "Vem censura aí, e não será por poucos dias. Quero a autorização do senhor para alertar nossos leitores de que estaremos sob censura", disse Dines. Nascimento Brito limitou-se a responder: "Vá em frente, mas não quero bagunça". Quando retornou à redação, já próximo das 23 horas, Dines foi recepcionado por dois majores do Exército que ali estavam como censores. Os dois majores terminariam a madrugada de 13 para 14 de dezembro humilhados por uma das mais inventivas primeiras páginas da história do jornalismo no Brasil - foram driblados por Alberto Dines como Garrincha entortava um joão qualquer. No canto superior direito lia-se o seguinte: "Ontem foi o Dia dos Cegos". No canto superior esquerdo, tradicional espaço da previsão do tempo, o leitor era apresentado à seguinte situação climática: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38 graus, em Brasília. Mín.: 5 graus, nas Laranjeiras".

Na manhã do dia 14 já não eram dois - e sim sete - os censores do Jornal do Brasil. O chefe deles, um major gaúcho, entrou na redação gritando: "Você me fez de palhaço". Dines gritou mais alto: "O senhor saia da minha sala, comporte-se". Outro major ainda tentou pedir calma. No domingo 15 o Jornal do Brasil não circulou porque um de seus diretores, o diplomata José Sette Câmara, tinha sido procurado pela polícia - e Nascimento Brito anunciara tirar o jornal de circulação caso isso acontecesse. Alberto Dines seria preso no dia 22 de dezembro.

A resistência na mesa do bar

O dia 13 de dezembro de 1968 não era mesmo um bom dia para festa. Mas houve, sim, quem tenha insistido em fazê-la. Naquela noite amarga, de gatos pardos, foi fundado o Bar Bip-bip, em Copacabana, no Rio de Janeiro, hoje reduto do melhor chorinho da cidade. Uma placa à entrada do bar informa: "Bip-bip, fundado em 13-12-1968 em homenagem à Mocidade Brasileira". O atual proprietário do botequim, Alfredo Melo, anos depois cruzaria sua vida com a do bar e a do AI-5. Em 13 de dezembro de 30 anos atrás, Melo preparava-se para estar na inauguração do recinto como mero freqüentador. Ao ouvir no rádio o anúncio do Ato Institucional no 5, logo intuiu que não era boa idéia ir ao rega-bofe. Pegou um táxi e foi para Bangu, bairro onde moravam seus pais e ele mesmo passara toda a vida até alugar um apartamento em Copacabana. Em Bangu, acionou o Fusca azul que costumava ficar parado na garagem e iniciou um périplo: foi à casa dos amigos que, naquele ano de 1968, se meteram em política e eram potenciais vítimas do AI-5. Um de seus amigos, assustado, chegou a rasgar uma carta que o poeta Carlos Drummond de Andrade enviara celebrando a criação de um centro acadêmico com seu nome. Em 1998 será a primeira vez que o Bip-bip de Alfredo Melo comemorará sua inauguração no dia 13, cravado. "Não festejávamos de raiva - era uma espécie de resistência silenciosa."


O placar: 22 a 1

O voto de cada ministro nas anotações de Costa e Silva. Apenas Pedro Aleixo disse não

1. Vice-presidente (Pedro Aleixo): não; optou pelo estado de sítio

2. Ministro da Marinha (Augusto Radmaker): sim, repressão do ato praticado pelo dep. M.M. Alves

3. Ministro do Exército (Lyra Tavares): sim

4. Min. Rel. Ext. (Magalhães Pinto): sim

5. Min. da Fazenda (Delfim Netto): sim

6. Min. Transportes (Mário Andreazza): sim

7. Min. Agricultura (Ivo Arzua): sim

8. Min. Trabalho (Jarbas Passarinho): sim

9. Min. Saúde (Leonel Miranda): sim

10. Min. Aeronáutica (Márcio de Souza e Mello): sim

11. Min. Educ. e Cultura (Tarso Dutra): sim, com modificação

12. Min. Minas e Energia (Costa Cavalcante): sim

13. Min. Interior (Afonso Albuquerque): sim

14. Min. Planejamento (Hélio Beltrão): sim

15. Min. Comunicações (Carlos Simas): sim

16. Chefe SNI (Médici): sim

17. Chefe EMFA (Orlando Geisel): sim

18. Chefe E.M. Armada (Adalberto de Barros Nunes): sim

19. Chefe E.M. Exército (Adalberto dos Santos): sim

20. Chefe E.M. Aeronáutica (Carlos Alberto Huet): sim

21. Min. Justiça (Gama e Silva): sim

22. Chefe Gab. Civil (Rondon Pacheco): sim

23. Chefe Gab. Militar (Jayme Portella): sim


A HERANÇA DAS TREVAS

A contabilidade dos dez anos de vigência do AI-5

Filmes proibidos - 500

Peças de teatro vetadas - 450

Livros censurados - 200

Revistas retiradas de circulação - 100

Letras de música cortadas - 50

Capítulos de novela cancelados - 12

Direitos políticos perdidos - 66

Cassações de mandatos - 313

Aposentadorias compulsórias - 348

Militares reformados - 139

Demissões de executivos do governo - 129


Fonte: Iuperj/Zuenir Ventura (1968 - O Ano que Não Terminou)

27 de julho de 2012

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