"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 4 de setembro de 2012

INVERSÕES DE UM INTELECTUAL ORGÂNICO

    
          Artigos - Movimento Revolucionário 
A descrição do estado de coisas oferecida pelo Sr. Safatle decerto se refere a um lugar que nada tem a ver com o Brasil.

Se alguém experimentar falar hoje, em alto e bom tom, que a adoção de crianças por casais homossexuais não visa, prioritariamente, mais à deturpação do conceito essencial de família do que a propiciar lares para crianças enjeitadas, é bem provável que irá ouvir umas boas imprecações – isto é, se não for linchado no meio da rua.
Se esse mesmo alguém abrir qualquer caderno econômico de qualquer jornal de grande circulação, é certo que encontrará pouquíssimas análises que apontem os malefícios da draconiana intervenção estatal no campo econômico, mas, em contrapartida, toneladas de propagandas (oficiais e oficiosas) às medidas econômicas do governo que “blindam” o País contra as crises capitalistas.

E, por último, não encontrará uma única propaganda de cigarros, mas decerto topará com um ou outro artigo de alguma figurinha importante e badalada falando sobre a “caretice” de se proibir o uso de maconha e que tais.


Por que digo tudo isso? Para ilustrar como o trabalho de conquista de hegemonia cultural da esquerda foi bem-sucedido. E não é necessário ter um profundo conhecimento de história, filosofia, política ou vida prática para notar que isso é algo claríssimo: basta ter uns rudimentos de raciocínio e perspicácia. Esse trabalho tem sido tão bem-sucedido que, de fato, quase todas as teses propaladas pela esquerda nos últimos 150 anos são, hoje, axiomas praticamente irretorquíveis.

Há exemplos muito atuais e abundantes disso: o bárbaro ataque cometido contra S.A.I.R. Dom Bertrand de Orleans e Bragança, a multitude de criaturas raivosamente espumantes exigindo a cabeça do professor Carlos Ramalhete, a invasão de uma paróquia carioca durante a tal Marcha das Vadias, as dantescas propostas de alteração do Código Penal feita por um grupo de “juristas”, a recente decisão do Conselho Federal de Medicina em prol de uma “morte digna” para pacientes em estado terminal, et cœtera.

No entanto, há quem defenda que, ao contrário, a esquerda não mais detém a hegemonia cultural. Vladimir Lenin Safatle, um exemplo de intelectual orgânico uspiano, publicou recentemente um artigo na revista (sic) Carta Capital intitulado “
A perda de hegemonia”. De acordo com nosso Lenin dos trópicos: “Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural.” A tese central do texto pode ser encontrada no seguinte trecho:


Poderíamos acreditar que a perda de tal hegemonia seria resultado direto da queda do Muro de Berlim. Sem desmerecer o fenômeno, não é certo, no entanto, que ele tenha papel tão determinante. Pois vale lembrar como a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do Partido Comunista, com sua orientação soviética. Na verdade, as causas devem ser procuradas em outro lugar.

Primeiro, há de se lembrar como, desde o fim dos anos 80, as universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a desempenhar o papel de intelectuais públicos. Os intelectuais que tínhamos vieram da geração que entrou na universidade nos anos 70. Geração que viveu de maneira brutal a necessidade de mobilização política. As gerações que vieram compreenderam-se com uma certa timidez. Elas, em larga medida, foram marcadas pelo desejo de agir no âmbito mais restrito da universidade.

Segundo, há de se colocar a perda da hegemonia cultural como um dos sintomas da era Lula. Do ponto de vista político, o esforço da classe intelectual brasileira parece ter se esgotado com a eleição do ex-metalúrgico. Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram ou que continuaram apoiando.
O simples abandono do apoio não foi uma operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Por outro lado, a repetição reiterada do lado bem sucedido do governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados no espaço público, devido ao medo de instrumentalização pela mídia conservadora.
A descrição do estado de coisas oferecida pelo Sr. Safatle decerto se refere a um lugar que nada tem a ver com o Brasil. A defesa de que “a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do Partido Comunista” ignora completamente o grande apoio logístico, propagandístico e financeiro fornecido pelos serviços secretos de diversos países comunistas, inclusive a própria KGB, para a nossa “esquerda cultural”. Além disso, ignora completamente a relação íntima com intelectuais estrangeiros cujos trabalho eram completamente delineados pelo Politburo soviético.

Além disso, o fato apontado de que “as universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a desempenhar o papel de intelectuais públicos” abarca um equívoco bastante perigoso: o de ignorar a atuação desses pretensos “intelectuais públicos”. Ao invés de se tornarem intelectuais públicos, esses indivíduos se encontram em lugares em que sua atuação é muito mais eficiente (e, por isso mesmo, perniciosa): nas escolas de nível fundamental e médio, públicas e privadas.

O altíssimo grau de ideologização e instrumentalização doutrinária do ensino brasileiro é aterrador, e é justamente o que tem garantido a hegemonia cultural da Esquerda no último meio século, pelo menos.

São os estudantes transformados por essa “linha de montagem” marxista que, ao chegarem aos bancos das universidades, passarão de vítimas a predadores ideológicos. Dessa forma, beira a desonestidade dizer que a universidade – e, lato sensu, o ensino no geral – é um “âmbito mais restrito” de atuação. Um dos grandes artífices dessa façanha foi Louis Althusser, que faz parte do cânon vermelho que o Sr. Safatle e outros tantos rezam fervorosamente.

O artigo, em suma, é um grande desfile de mentiras deslavadas. Não sei em que medida o Sr. Safatle dá credibilidade a elas: em caso positivo, isso faria dele um ingênuo professor universitário que não possui habilidade para analisar fatos históricos e sociais; em caso negativo, todos os argumentos utilizados não passam de ideias meticulosamente arquitetadas com o objetivo de ludibriar leitores incautos. Em ambos os casos, trata-se de uma falsificação dos fatos. E, como sempre gostamos de lembrar, contra factum non argumentum est.
 
04 de setembro de 2012
Felipe Melo

Nenhum comentário:

Postar um comentário