"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 22 de setembro de 2012

UM TEATRO QUE CUSTA CARO

Meu caro Bonow:

No fundo, a discussão é sobre o que entendemos por gaúcho. Meu conceito coincide com o da maioria dos dicionários. Vejamos em alguns deles como é definido o gaúcho:

Diccionario del uso del español, de María Moliner: Se aplica a los naturales de las pampas de la Argentina y del Uruguay, generalmente mestizos; son muy buenos ginetes y se dedican a la ganadería o la vida errante.

Diccionario de la lengua española, da Real Academia Española: Dícese del hombre natural de las pampas del Río de la Plata em Argentina, Uruguay y Río Grande do Sul; úsa-se más como substantivo, para designar a naturales de estas pampas, que son por lo común mestizos de español e índio, grandes jinetes, dedicados a la ganadería o a la vida errante.

Larousse de la langue française: Gardien de troupeaux de la pampe argentine. Dizionario de Agostini della lengua italiana: mandriano a cavallo della pampa argentina.

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, já encontramos uma nova acepção: diz-se de ou o habitante da zona rural do Rio Grande do Sul e, por extensão, de todo o Estado; o habitante da região rural (pampas) do Uruguai e da Argentina, que se dedica à criação de gado; peão de estância; bom cavaleiro.

Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda: Primitivamente, o habitante do campo, descendente, na maioria, de indígenas, de portugueses e de espanhóis; rio-grandense-do-sul; o natural do interior do Uruguai e de parte da Argentina; peão de estância; cavaleiro hábil.

Como se pode ver, a o conceito de gaúcho está intimamente associado a campo. O dicionário da RAE fala em Rio Grande do Sul, mas no "hombre natural de las pampas". Só nos dicionários brasileiros é que a palavra se associa a rio-grandense. Mesmo assim, a tônica é dada a campo e gado. Uruguai e Argentina, onde também há gaúchos, não se apropriaram da palavra para designar os habitantes do país.

Você faz uma afirmação signicativa: “Como os ingleses, chineses e franceses, parece-me que pertencemos a um povo de natureza colonizadora, impondo uma cultura rural por todo o oeste do Brasil”. Ora, ingleses, chineses e franceses colonizaram povos distantes da própria geografia. Ao expressar-se assim, você traduz uma peculiar idiossincrasia do gauchismo, a de considerar que o Brasil é um país distante, que precisa ser colonizado. Pelo que me consta, apesar dos arroubos farroupilhas, o Rio Grande do Sul ainda é Brasil.

Você fala em espeto corrido, café colonial, chimarrão, galeto e rodízio de pizzas como aquisições culturais, suponho que gaúchas, pois é isto que discutimos. Chimarrão, vá lá! Mas o espeto corrido não é coisa daquele gaúcho lá do campo. Pelo que me consta, surgiu de forma tosca como passadio de caminhoneiros e foi aos poucos se sofisticando, na capital. Café colonial, galeto e pizza é culinária de colônias de imigrantes, nada a ver com gaúcho. Na região da Campanha, onde talvez ainda exista o que restou do gaúcho, come-se muito mal. O básico é carne, arroz, feijão, eventualmente batata e milho, em suma, o balbuciar de uma culinária.

Você fala no teatro das indumentárias, onde tampouco vê grandes críticas: "nunca existiu um "cowboy" como John Wayne no Arizona. A história mostra que eram uns mendigos miseráveis que o cinema americano glamourizou, apenas isso. Nunca existiu um teatro tradicional balinês. Aquelas máscaras exóticas que os turistas trazem na mala foram criadas por um europeu no início do século XX e vendidas em Paris como pertencentes a um ritual religioso de uma cultura exótica”.

E nisto coincidimos. O atual "gaúcho" é um cidadão urbano que aos fins de semana se veste de gaúcho. Me lembra episódio ocorrido em Manaus com dois amigos franceses. Em visita ao Brasil, como todo bom europeu, queriam conhecer a Amazônia. E os índios, obviamente. Contrataram uma visita a uma aldeia e até lá foram conduzidos por um guia. Minutos antes de chegar o guia apitou. Para que os “índios” se vestissem de índios. As bombachas, que para o homem do campo sempre foram uma veste, é hoje bandeira de uma ideologia. E o personagem do gaúcho passou a ser interpretado por atores de teatro amador.

Tens toda razão, Bonow, quando afirmas que o problema é ideológico. Que restou da famosa revolução? Um pequeno poste plantado num descampado no Ponche Verde, em lugar onde não houve nenhum combate, nem rendição alguma – ou paz, como preferem os delicados – foi assinada.

Ser "gaúcho", hoje, é teatro que custa caro. A começar pelas pilchas. Sem dinheiro, pobre diabo algum consegue ser sócio de CTG. Pra começar, o que ainda resta do gaúcho sequer teria plata para comprar as botas.


22 de setembro de 2012
janer cristaldo

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