"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 16 de outubro de 2012

A MEUS MESTRES DE DOM PEDRITO

Professores mesmo são aqueles homens que um dia pensaram o mundo e que elegemos como faróis de nossas vidas. Neste sentido, meus mestres nasceram antes de mim e estão todos aqui a meu lado, trocando cotoveladas em minha biblioteca.

Chamam-se Platão, Sócrates, Swift, Cervantes, Dostoievski, Hernández, Renan, Schliemann, Nietzsche, Herman Hesse, Huxley, Orwell, Stephan Zweig, Pessoa, Sábato e tantos outros, que estão aqui a meu lado e ao alcance de minha mão.

Nietzsche terá sido o mais decisivo dele. Destruiu tudo o que o Estado e a escola me ensinavam e esta é a função do bom professor.

Há autores que libertam, e este autor varia de leitor para leitor. No meu caso, foi Nietzsche. Meus professores de Filosofia não gostavam do alemão, ele demolia todas as filosofias. Cá e lá ele era citado, afinal não podia ser ignorado. Mas nunca tive professor que recomendasse Nietzsche em suas bibliografias.

É leitura, penso, que deve ser feita quando se é jovem. Não sei se adianta ler Nietzsche aos trinta anos. Também não sei se seria útil a um jovem contemporâneo. Em minha época de universitário, pensamento se demolia com pensamento. Hoje, os meios de comunicação se encarregam deste trabalho de demolição.

A parte estes, tive não poucos professores na vida. Curiosamente, os mais decisivos em minha vida não foram os de renomadas universidades internacionais, mas os daquela pequena cidadezinha onde me criei, lá na fronteira seca do Rio Grande do Sul, entre Uruguai e Brasil.

Fiz cinco universidades. Nelas, pouco aprendi de relevante. Na Sorbonne Nouvelle (Paris III), durante quatro anos de pesquisas, tive dezesseis horas de aula com quatro professores. O único que me trouxe algo foi Mme. Fraisse. Ministrava aulas sobre literatura e comunismo e as quatro horas que com ela tive me abriram uma vasta bibliografia, fundamental para entender a Europa e o século passado.

Meu orientador teve uma única virtude: não atrapalhou a redação de minha tese.

Dele guardo uma lição fundamental: une thèse a trois parties: la première, la deuxième et la troisième. Só quem freqüentou universidade em Paris consegue entender a profundidade deste princípio. Certa vez, ao fazer uma exposição, comecei explicando que a dividiria em cinco partes. Faites pas ça, Monsieur – atalhou o professor -. Um francês só entende algo dividido em três partes. Descartes oblige.

Outro professor, M. Décaudin, um desastre. Como a disciplina que ele lecionava, poesia francesa contemporânea. Meu temor, em suas aulas, era incorrer em lapso e chamá-lo de M. Décadent. Mas consegui me conter. Em suma, meus quatro anos de Paris constituíram um excelente aprendizado. Mas quem me ensinou foi a cidade, sua imprensa, suas livrarias, seus restaurantes, os estrangeiros que lá viviam. Foi em Paris que conheci a América Latina. A Sorbonne Nouvelle, salvo Mme. Fraisse, pouco ou nada me deu.

Do curso de sueco da Universidade de Estocolmo, nenhuma queixa. Recebi o que precisava, um eficiente domínio da língua. Mas cursei também Filmvetenskap, isto é, Ciência do Cinema, seja lá o que isto quer dizer. Pura teoria, curso mais adequado para senhoras na menopausa. Não consegui terminar nem mesmo o primeiro semestre.

A bem da verdade, minha grande mestra na terra dos Sveas, em matéria tanto de smörgåsbord como de literatura, foi Lena Hofmann, uma terna svenska flicka que, ao despedir-se de mim em Arlanda, me pôs um livrinho nas mãos. "Leva isto como lembrança de mim e da Suécia". Era Kalocain, de Karin Boye. Foi o livro que me fez tradutor.

Meu curso de Literatura Espanhola, na Complutense de Madri, pura perda de tempo. Meus professores pareciam desconhecer o Quixote. Certa vez, uma amiga uruguaia perguntou o significado de expressão muito corrente em Madri: vale! Ah, explicou a professora de literatura, é uma gíria moderna, muito usada pelos jovens. Por acaso, eu aproveitava a aula para reler o Quixote. Citei a última frase do prólogo: “Y con esto, Diós te dé salud, y a mi no me olvide. Vale”.

A expressão já estava no Quixote e a professora de literatura a desconhecia. Silêncio sepulcral na aula. Meu grande mestre, nesses dias de Madri, foi o jornalista Enrique Sordo, autor de España, entre trago e bocado, um excelente guia da culinária e dos vinhos espanhóis. Eu o lia durante as aulas e ia traçando meu itinerário pelas tardes e noites madrilenhas. Sordo me guiou também por outras regiões da Espanha.

Ao final de seis meses – que na verdade eram quatro – devíamos defender uma tese. Que era sustentada em dez minutos, com mais cinco para réplica e tréplica. Me recusei à farsa e escrevi uma carta aos diretores do curso. Nela afirmava que quando fazemos um curso no Exterior defendemos duas teses: uma é aquela que fica entregue às traças e à poeira das bibliotecas. A outra, e mais importante, é aquela que defendemos todos os dias nos cafés e restaurantes da cidade, e esta eu a defendi com brilho. Terminei com a frase clássica que, naqueles dias, encerrava os requerimentos oficiais junto à administração: Muchas gracias y que Diós dé mucha salud a Usted y sus hijos!

Claro que não foram dias inúteis. Voltei com as malas cheias de livros e, entre eles, La Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, que acabei traduzindo no Brasil, como também Mazurca para dos muertos. Mais lembranças inefáveis do Gijón e de El Espejo, que sempre me impediram pesquisas na Biblioteca Nacional. Explico. Estes dois cafés literários ficam no Paseo de Recoletos, logo antes da biblioteca. Nunca consegui atravessar o Paseo.

Do curso de Filosofia, em Porto Alegre, pouco ou nada restou. A maioria dos professores era marxista ou marxizante, e a dialética em Platão era apenas um pretexto para discutir a dialética em Hegel e Marx. Tirei restauradoras sonecas nas aulas do Gerd Bornheim. Gerd nos falava da entidade do ente, da mesidade da mesa, da cadeiricidade da cadeira. Mas nada ficávamos sabendo da gerdidade do Gerd. Restaram as aulas de lógica do professor Dagmar Pedroso e as leituras de Platão orientadas por Leônidas Xausa.

Professor importante em minha vida, nos dias de Porto Alegre, foi o Aníbal Damasceno Ferreira, que nada tinha a ver com a universidade. Discreto pesquisador das letras gaúchas, a ele devemos a descoberta de Qorpo Santo. Introduziu-me em Swift e nos humoristas ingleses. Tentou vender-me o Machadinho, mas não conseguiu. Seja como for, seu magistério, exercido nas gélidas madrugadas da Praça da Alfândega, foi fundamental em minha formação.

Do Curso de Direito, em Santa Maria, só lembro do irmão Gelásio, e isso porque era o diretor da faculdade. Recebi noções de direito constitucional e organização do Estado que me foram valiosas no exercício do jornalismo, é verdade. E o resto é silêncio.

Feliz daquele que guarda uma província no fundo do coração, disse o poeta. Fundamentais em minha vida foram meus professores de ginásio, dos quais guardo gratas lembranças. Meu professor de História, professor Varílio Meneghetti, nos falava de Queóps, Quéfren e Miquerinos. Para mim eram realidades que pertenciam a um outro planeta. Nunca me ocorreu que um dia as veria de perto. Tampouco que entraria na tumba de Tutankamon e o veria em seu sarcófago.

Professor Hugo Brenner de Macedo, de Geografia, nos falava de mares, desertos e montanhas. Ora, de geografia eu só conhecia a planura monótona da pampa, entremeada pelo vago dar-de-ombros das coxilhas, e não tinha idéia alguma do que fosse mar. Mar, só fui conhecer lá pelos 18 ou 19. Mais tarde, só bem mais tarde, singraria o Atlântico e o Pacífico, o Mediterrâneo e o Egeu, o Negro e o do Norte, o Tirreno, o Adriático e o Báltico.

Ver o mar pela primeira vez é sempre um acontecimento na vida de um homem do campo. Dá uma coisa por dentro, parece que o peito vai explodir. Mal se ouve o ruído das ondas, pressentimos que algo de grandioso está por se revelar. Tampouco jamais imaginei que um dia vagaria pelos desertos, mares e montanhas, dos quais professor Hugo nos trazia notícias, mas jamais teve a chance de ver de perto. Nas montanhas de El Hoggar, contemplando um nascer de sol esplendoroso além do Tridente, evoquei professor Hugo.

Mas estes mares e montanhas pouco importavam para o professor Hugo. “Isso vocês estudam nos livros. Vamos falar de geografia econômica. De como o homem faz para comer.” O que implicava estudar também História. Professor Hugo também lecionava português e era implacável com erros de grafia ou gramática. Saí do ginásio escrevendo um português impecável, que hoje não encontramos nem nas redações dos grandes jornais.

Com o padre Lourenço van der Raadt, aprendi um inglês que me serviu para o resto da vida. Oblata holandês, nos repassava gravações da BBC. Verdade que, por uma certa ojeriza ao universo ianque, não domino a língua com eficácia. Mas me serviu para muitas viagens e mesmo empregos.

Padre Chico, de matemática, era um geninho. Se pedíamos a raiz quadrada de um número de dez algarismos, ele fechava os olhos, começava a decompor e nos dava o resultado. Verdade que não tinha muita didática. Mas saí do ginásio extraindo até a raiz cúbica. Verdade que hoje não sei para que serve isso. Mas sempre é um exercício intelectual divertido.

Professor Hélio Sarubbi nos falava do pêndulo de Foucault. Nunca imaginei que veria a Terra girar, no Panthéon, em Paris. Professor Darci Elio Sari, de latim, nos falava do Coliseu, catacumbas e Foro Romano. Para mim, pertenciam ao território da lenda. Nem sonhava que um dia meus pés pisariam aquela poeira milenar.

Maria Veiga Miranda me ensinou francês. Eu não tinha idéia alguma porque aprendia francês naquelas bibocas, mas me agradava falar outra língua. Era como se saísse de mim mesmo. Só entendi o sentido daquele ensino no dia em que defendi uma tese em Paris. Quando entrei na sala Bourjac, no vetusto prédio da Sorbonne, para minha soutennance, meu primeiro pensamento foi para ela. Maria é hoje uma brisa do Sena que paira sobre as margens do Santa Maria. No dia em que Maria partir, Dom Pedrito ficará mais pobre.

Em suma, as ferramentas fundamentais para esse difícil exercício que é o viver, eu as recebi em Dom Pedrito. Mais tarde, bem mais tarde, foram meus dias de ser professor. Descobri então que o ensino que me foi dado naquela cidade lá da Campanha, no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, hoje não existe nem na universidade.


16 de outubro de 2012
janer cristaldo

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