"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 2 de outubro de 2012

MENSALÃO: FRAGMENTOS DO VOTO DO MINISTRO CELSO DE MELLO - 30a. SESSÃO

Celso de Mello: 'Assalto à Administração Pública'

Rodrigo Haidar, Consultor Jurídico

Penúltimo ministro a votar na trigésima sessão de julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, não poupou adjetivos para classificar os crimes cometidos pelos réus do chamado núcleo político da denúncia.

De acordo com seu voto, os condenados lançaram mão de “ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública”.

O ministro acompanhou na íntegra o voto do relator, Joaquim Barbosa, para condenar 12 dos 13 réus, cujas condutas foram julgadas no item que terminou nesta segunda-feira (1/10), que faz parte do capítulo seis da denúncia – clique aqui para ler.

A maior parte dos ministros refutou a tese de que o dinheiro distribuído para partidos da base aliada no primeiro mandato do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva era caixa dois destinado a pagamento de dívidas de campanha. Para eles, tratou-se de compra de apoio político no Congresso Nacional.


De temperamento calmo, o ministro Celso de Mello foi incisivo e se mostrou indignado ao analisar a conduta dos réus. Isso fica claro nos fragmentos do seu voto, que o ministro liberou para publicação pela revista Consultor Jurídico. Para o decano, “o ato de corrupção constitui um gesto de perversão” da ética do poder. O ministro afirmou que a República “não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa corromper”.

Sobre a Ação Penal 470, Celso de Mello afirmou: “Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais”.

O decano do Supremo afirmou que o cidadão “tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis”. E emendou: “O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania”.

O ministro ainda classificou como marginais do poder os réus envolvidos no esquema de compra de apoio político elaborado pelo PT, de acordo com a Procuradoria-Geral da República e, agora, o Supremo Tribunal Federal.

“Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder”.

Leia os trechos mais emblemáticos do voto do ministro Celso de Mello em

Fragmentos do voto proferido pelo eminente Ministro Celso de Mello na AP 470/MG, sessão plenária de 01/10/2012

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Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético-jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal.
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Quero registrar, neste ponto, Senhor Presidente, tal como salientei em voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário, que o ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder e da ordem jurídica, cuja observância se impõe a todos os cidadãos desta República que não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa corromper.
Quem transgride tais mandamentos, não importando a sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados, expõe-se à severidade das leis penais e, por tais atos, o corruptor e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.
Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais.
Fácil constatar, portanto, considerados os diversos elementos legitimamente produzidos nestes autos e claramente demonstrados pelo eminente Relator, que a conduta dos réus, notadamente daqueles que ostentam ou ostentaram funções de governo, não importando se no Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculou o próprio espírito republicano.
Em assuntos de Estado e de Governo, nem o cinismo, nem o pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o oportunismo podem justificar, quer juridicamente, quer moralmente, quer institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção parlamentar ou as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder Executivo ou de agremiações partidárias.
Extremamente precisa a observação, sempre erudita, do Professor Celso Lafer, quando, ao discorrer sobre o espírito republicano, acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio que explica a dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (...) pela virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade política corrompida”.
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É por isso, Senhores Ministros, que a concepção republicana de poder mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado patrimonial.
Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor Presidente, tais como se qualificam aqueles consagrados nos princípios da transparência, da igualdade, da moralidade e da impessoalidade, o sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.
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O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.
A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela praticada no Parlamento da República, evidencia-se pelas múltiplas consequências que dela decorrem, tanto aquelas que se projetam no plano da criminalidade oficial quanto as que se revelam na esfera civil (afinal, o ato de corrupção traduz um gesto de improbidade administrativa) e, também, no âmbito político-institucional, na medida em que a percepção de vantagens indevidas representa um ilícito constitucional, pois, segundo prescreve o art. 55, § 1º, da Constituição, a percepção de vantagens indevidas revela um ato atentatório ao decoro parlamentar, apto, por si só, a legitimar a perda do mandato legislativo, independentemente de prévia condenação criminal.
A ordem jurídica, Senhor Presidente, não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos e reprováveis transgressões criminosas, no desempenho da elevada função de representação política do Povo brasileiro.
Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis.
O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.
A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos que importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato que assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dos dogmas essenciais da República, a repulsa por parte do Estado, tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes dos demais Poderes.
Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria Constituição da República, em face de que prescreve o seu art. 55, § 1º, e a legislação penal.
Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a aceitação criminosa de suborno, culmina por atingir, injustamente, a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo,nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja – que se haja mostrado indigno do desempenho da magna função de representar o Povo, de formular a legislação da República e de controlar as instâncias governamentais do poder.
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Importante destacar, Senhor Presidente, as gravíssimas consequências que resultam do ato indigno (e criminoso) do parlamentar que comprovadamente vende o seu voto e que também comercializa a sua atuação legislativa em troca de dinheiro ou de outras indevidas vantagens.
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A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático.
Daí os importantes compromissos internacionais que o Brasil assumiu em relação ao combate à corrupção, como o evidencia a subscrição, por nosso País, da Convenção Interamericana contra a Corrupção (celebrada na Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações Unidas (celebrada em Mérida, no México, em 2003).
As razões determinantes da celebração dessas convenções internacionais (uma, de caráter regional, e outra, de projeção global) residem, basicamente, na preocupação da comunidade internacional com a extrema gravidade dos problemas e das consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e a segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, além de comprometer a própria sustentabilidade do Estado democrático de direito, considerados os vínculos entre a corrupção e outras modalidades de delinquência, com particular referência para a criminalidade organizada, a delinquência governamental e a lavagem de dinheiro.
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Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação.
Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder."

Transcrito da Revista Consultor Jurídico
02 de outubro de 2012

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