"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O INÍCIO DA CONFUSÃO

    
          Artigos - Cultura 
Lendo esse tour de force historiográfico admirável que é O Concílio Vaticano II. Uma História Nunca Escrita, de Roberto de Mattei (Vide Editorial, 2012), chamaram-me a atenção duas séries de fenômenos que se repetiram ao longo de todo o Concílio ao ponto de marcar para sempre a sua fisionomia no quadro da história das idéias no século XX.

De um lado, aparece o contraste entre a malícia e destreza política da minoria progressista, cujo ativismo incansável venceu todas as resistências, dobrou todas as vontades, impôs à assembléia praticamente tudo o que desejava, e a ingenuidade patética dos conservadores, que chegaram ali despreocupados, como quem fosse a um passeio de rotina, sem ter a menor idéia de que os esperava um adversário tenaz, organizado e disposto a tudo.
 
A maioria do episcopado acreditava piamente que o modernismo teológico condenado no Syllabus de Pio IX em 1864 estava morto e enterrado. O Concílio mostrou que ele estava é se fazendo de defunto para assaltar o coveiro. Renovadas, maquiadas, camufladas sob mil aparências desnorteantes, patrocinadas no fim das contas pelos próprios papas que teriam a obrigação de condená-las, as teses modernistas reapareceram ali com uma força avassaladora, reduzindo seus oponentes àquele estado de estupor paralisante, de indignação impotente, que a Bíblia descreve como “escândalo”.

Mas esse fenômeno, por mais chocante que pareça, não foi propriamente uma novidade: ele apenas reencenou, em escala eclesial, o crônico triunfalismo suicida dos conservadores em geral – não só religiosos --, que universalmente confundem a teoria com a prática, a superioridade abstrata com a supremacia de facto, e, porque impugnaram os erros do adversário, acreditam que com isso o removeram do cenário histórico, muito se surpreendendo quando o bicho sai do túmulo com um sorriso de escárnio e os faz de otários pela enésima vez.

Se a vida fosse um tratado de lógica, as idéias cretinas não teriam vez; não existiriam revolucionários, demagogos insanos, inventores de sociedades paradisíacas que invariavelmente se transmutam, no devido tempo, em infernos sangrentos. Mas a vida não é nada disso: ela é um teatro do absurdo, onde as promessas enganadoras são justamente as mais persuasivas e onde desprezar os conselhos da sabedoria parece ser a obrigação número um do ser humano.
Na Igreja ou fora dela, revolucionários e conservadores esmeram-se em ignorar essa obviedade, os primeiros buscando incansavelmente novos e mais sofisticados motivos para deixar-se seduzir pela serpente, os segundos apostando que, deixada a si mesma, sem nenhuma necessidade de advertências especiais, desta vez – ah, sim, desta vez, ao contrário de todas as anteriores! --, Eva rejeitará a maçã.

O que mais me surpreendeu no panorama traçado com mão de mestre por de Mattei não foi, portanto, que essa tragicomédia de erros se repetisse uma vez mais. Foi, em vez disso, a pobreza intelectual, a rigidez mental dos debates, onde posições firmadas e consolidadas de antemão se confrontaram estaticamente, sem nenhuma interpenetração dialética nem fecundação mútua, reduzindo tudo, em última instância, a uma disputa política no sentido de Carl Schmitt, a uma contagem de cabeças.

O partido progressista, é verdade, chegou ali armado de um instrumental dialético mais aprimorado e sutil, mas de uma dialética perversa, que em vez de compreender em profundidade as intenções do adversário buscava apenas macaquear-lhes as aparências para convertê-las capciosamente nos seus opostos, dando-se os ares inocentes de quem seguia a tradição católica no instante mesmo em que fazia tudo para destruí-la.

Em favor dos progressistas, deve-se reconhecer também que descreviam acuradamente o estado de coisas na sociedade moderna, apenas conferindo-lhe indevidamente o valor e o status de um princípio fundador, de uma fonte doutrinal, consagrando em lugar da revelação a autoridade do fato consumado.
Por exemplo: o planeta está superpovoado? Suprima-se a primazia da procriação na doutrina católica do matrimônio. Os comunistas dominaram metade do mundo? Passemos a afagá-los, esquecendo tudo o que os papas falaram contra eles.

Em face disso, que fizeram os conservadores? Limitaram-se a repetir fielmente mas mecanicamente a doutrina de sempre, opondo-a às pretensões modernistas como se estivessem no mesmo plano, como se fossem programas antagônicos de partidos políticos.
 
Não fizeram o mínimo esforço de absorver e transcender criativamente essas pretensões, de provar em ato a superioridade da doutrina tradicional pela sua força de explicar e compreender desde a raiz a realidade sociocultural da qual seus adversários se faziam meros bonecos de ventríloquo e legitimadores acríticos, quando não apologistas deslumbrados. 

A palavra “concílio”, que significa “assembléia”, vem da mesma raiz do verbo “conciliar”. Mas, nas condições que acabo de mencionar, a única conciliação possível entre os opostos era o acordo político, um ajuste mecânico de concessões que só favorece os mais astutos e oportunistas, como de fato acabou acontecendo. Nada da conciliação dialética que ensinava o velho Aristóteles, a qual exige absorção, integração e superação. A malícia de uns e a inércia intelectual de outros fizeram do Concílio o toque inaugural da confusão contemporânea.
 
21 de novembro de 2012
Olavo de Carvalho
Publicado no Diário do Comércio.

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