"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O ISLAMISMO TOTALITÁRIO E SUA ORIGEM


Não se pode compreender a doutrina islâmica totalitária e fundamentalista sem que se mencione Sayyid Al- Qutb Ibrahim, o mais importante ideólogo da Irmandade e do pan-islamismo, figura lendária no Oriente Médio, morto por Nasser em 1966.

O problema do islamismo radical apresenta aspectos históricos multicausais e pouco se discute sobre suas características na imprensa e na universidade brasileiras. Desde o fim do Império Otomano, em 1924, surgiram no mundo árabe movimentos nacionalistas que lutavam contra o controle franco-britânico na região. A partir do final da década de 20, o sionismo foi considerado um movimento intruso em meio às aspirações árabes. Na medida em que o nazifascismo tornava-se uma poderosa força política na Europa, grande parte das lideranças nacionalistas dos recém-criados Síria, Transjordânia, Líbano, Iraque e Arábia Saudita, assim como as lideranças palestinas, viam os nazistas e fascistas como aliados contra a França e a Inglaterra, que dominavam o Oriente Médio por meio do sistema de mandatos criado pela Liga das Nações, depois da 1ª Guerra Mundial. Dessa época até hoje, o rejeicionismo anti-israelense nesses países prosperou em progressão geométrica, acirrado pela criação do Estado de Israel, pelas derrotas militares que os israelenses impuseram aos países árabes depois de sua independência, em 1948, e pela ocupação dos territórios palestinos em 1967.


No Ocidente, somente após as recentes revoltas populares na Tunísia, Lìbia, Egito e Síria é que se volta a discutir sobre as origens do islamismo radical e seu nível de inserção na cultura política dos países muçulmanos. O islamismo radical e totalitário não tem início com a revolução iraniana de 1979, como pensam muitos. Ele desenvolveu-se desde 1928, com a criação da hoje conhecida Irmandade Muçulmana (Al Ikhwan al-Muslimun) por Hasan Al Bana e meia dúzia de estudantes, no Cairo. Seu arcabouço doutrinário pode ser resumido em alguns pontos: rejeição ao colonialismo e aos valores ocidentais, retorno à pureza do Islã, sacrifício extremo pela causa, assistencialismo islâmico, tomada do poder político por meios revolucionários, refundação do califado unificado no mundo muçulmano, sob a autoridade exclusiva do Corão e abolição de todas as instituições implantadas no mundo islâmico pelo Ocidente, com a conseqüente extinção dos estados árabes tais como existem, além da eliminação de Israel.

A Irmandade Muçulmana é a organização-mãe de numerosos grupos terroristas islâmicos. Ela foi criada como reação à extinção do califado turco em 1924, decretada pelo reformador Kemal Ataturk, em conseqüência do fim do Império Otomano após 1ª Guerra Mundial. Hassan Al Banna, seu fundador, era um professor egípcio que, na época, denunciava" a doença que reduziu a ummah (comunidade muçulmana) ao seu estado atual" , o que o motivou, juntamente com outros cinco jovens – todos na faixa dos vinte anos – a criar aIrmandade.

Limitada inicialmente à reforma moral e espiritual, a Irmandade cresceu de modo impressionante e tornou-se a mais importante organização político-integrista do mundo. Entre os anos 30 e 40, contava com cerca de 500 mil membros no Egito, além de afiliados em todo Oriente Médio. Esse crescimento ocorreu devido às circunstâncias políticas do pós-guerra e aos seus métodos de organização. Quando a 2ª Guerra Mundial terminou,a Irmandade era uma força política expressiva no Egito e jogou papel fundamental na luta contra a antiga ordem colonial dos britânicos e franceses. Seu objetivo era libertar a pátria islâmica do controle dos estrangeiros e infiéis (kafir) e estabelecer um estado islâmico unificado.

Al-Banna construíra uma organização forte e disposta a realizar essa meta, com proto-estruturas de governo paralelo, unidades com funções específicas (propaganda, relações com a imprensa, tradutores das várias línguas do Oriente Médio) seções que controlavam distintos segmentos da sociedade (camponeses, trabalhadores e profissionais liberais),vínculos com o mundo islâmico, comitês especializados em finanças e assuntos legais e redes assistencialistas, organizadas em torno de mesquitas e associações islâmicas de caridade. Essa estrutura não era, entretanto, suficiente para levá-la ao poder político no Egito. Inspirado nos "camisas negras" de Mussolini formou um braço paramilitar (cujo slogan era "ação, obediência, silêncio, fé e luta"). Na realidade, contuituía um aparato secreto (al-jihaz al-sirri) e uma agência de inteligência para coordenar ataques terroristas e assassinatos.

Em 1948, depois de desempenhar papel central na mobilização de voluntários para lutarem na guerra contra Israel e, assim, tentar impedir a criação do estado judeu, a Irmandade pensou estar preparada para lançar um golpe de estado contra a monarquia egípcia. Em 18 de dezembro de 1948, o Primeiro Ministro do rei Farouk, Nuqrashi Pasha, estancou a tentativa. Menos de três semanas depois, aIrmandade retaliou e assassinou Pasha. O governo, por sua vez, desencadeou uma perseguição à Irmandade, assassinando Al Banna e muitos de seus agentes em 12 de fevereiro de 1949. Abalada pelo golpe, a Irmandade mesmo assim estava longe de ser destruída. Sob a liderança do ainda mais radical, Sayyid Qutb, ela continuou a lutar pela tomada do poder e reorganizou-se no inicio dos anos 50 , apoiando os Oficiais Livres liderados por Gamal Abdel Nasser, Mohamed Naguid e Anuar El Sadat, no golpe que destituiu a monarquia do Rei Farouk em 1952.
Não se pode compreender a doutrina islâmica totalitária e fundamentalista sem que se mencione Sayyid Al- Qutb Ibrahim, o mais importante ideólogo da Irmandade e do pan-islamismo, figura lendária no Oriente Médio, morto por Nasser em 1966. Seu pensamento político literalista e revivalista fundamenta-se na ideia de que os homens devem ser governados pelas leis extraídas do Corão (a Sharia), que provêm de Deus e não por suas próprias leis. Sua obra foi traduzida para o farsi (persa) pelo próprio Aiatolá Khomeini e suas idéias, desde a revolução islâmica no Irã, em 1979, têm sido colocadas em prática pelos aytollás. A autoridade política, segundo essa concepção integrista, deve ser exercida por conselhos de doutores na Sharia.

Em seu mais influente livro, Os Marcos (Maalim fil Tarik), escrito em 1964, na prisão, Qutb explicita o seu conceito político anti-ocidental mais conhecido: a jahilya, ou ignorância pagã e rebelião contra Deus. Segundo ele, a "religião é realmente a declaração universal da liberdade do homem sobre a servidão imposta por outros homens e da servidão aos seus próprios desejos, que é uma outra forma de servidão humana; é a declaração segundo a qual a soberania pertence a Deus apenas e que somente Ele é o senhor de todos os mundos" Ainda conforme Qutb: "todo sistema no qual as decisões finais estão referidas as seres humanos e nos quais as fontes da autoridade são humanas, deificam os seres humanos por designarem outros que não Deus como soberanos sobre os homens. Essa declaração quer dizer que a autoridade usurpada de Deus deve ser reconduzida a Ele e que os usurpadores devem ser expulsos - aqueles que por si próprios tramam leis para outros seguirem, assim elevando-se ao status de senhores e reduzindo os outros ao status de escravos. Em suma, proclamar a autoridade e a soberania de Deus significa eliminar todo o domínio humano e anunciar a lei Daquele Que Sustenta o Universo sobre o mundo inteiro, nos termos do Corão." (Qutb, 1964: cap 4)

A Irmandade foi aliada de Nasser e depois combatida por ele, com o apoio da CIA e de agentes recrutados do aparelho de inteligência política nazista. Nasser é geralmente visto como alguém que resistiu aos interesses franceses, ingleses e americanos no Oriente Médio. No entanto, hoje conhecemos fatos que há até pouco tempo circulavam apenas em ambientes acadêmicos restritos, com pouca repercussão na imprensa. Tais fatos revelam que a CIA cumpriu papel importante no apoio ao movimento dos Oficiais Livres que derrubou Farouk. Documentos "desclassificados" há dez anos pelo governo dos EUA, acessíveis no Archives Library Information Center/ National Archives and Records Administration.(NARA) revelam que tanto Nasser como a Irmandade tiveram na CIA uma forte aliada. A CIA recrutou vários membros do primeiro escalão das SS, trazidos para o Egito por Farouk após a 2ª Guerra, com a ajuda do xerife de Jerusalém e líder da Revolta Árabe contra os judeus na Palestina (1936-39), Haj Amin El Husseini, que desde 1936 trabalhava com o apoio dos nazistas. Com a ajuda de Reinhard Gehlen, ex-chefe da Inteligência Militar Alemã no Frente Oriental durante a 2ª Guerra (e, desde 1952, diretor da Agência Federal de Inteligência da Alemanha Ocidental- AFI) e sua rede de espiões que atuava na Europa, durante a Guerra Fria -formada por ex-agentes da Gestapo, a Irmandade apoiou Nasser no golpe contra a monarquia de Farouk.

O movimento liderado por Nasser derrubou Farouk, que abandonou o Egito e foi substituído por seu filho Ahmad Fouad, cuja posição de monarca tornou-se meramente decorativa, porque o país passou a ser controlado pelos militares nacionalistas. Em 1953, Fouad foi finalmente deposto, a monarquia extinta e criada a atual república, com Mohamed Naguid colocado na presidência. Os alemães instalados no Egito por Farouk, colaboraram com os jovens militares liderados por Nasser e com a Irmandade Muçulmana para derrubar a monarquia e continuaram a exercer forte influência no novo regime, sob monitoramento da CIA, que, desde 1953 se aproximara de Nasser, devido ao interesse dos EUA em manter o Egito como regime sob sua influência, afastando-o de ingleses e franceses. Naguid foi deposto por Nasser em 1954 e a CIA ajudou a organizar o serviço de inteligência e segurança externa do novo governo, numa operação conduzida por Allen Dulles, seu diretor desde 1953. Dulles recorreu ao General Gehlen para coordenar as ações no Egito. Gehlen designou Otto Skorzeny para a tarefa. Ex-coronel da SS, Skorzeny era um dos homens-chave da Rede Odessa - que obteve refúgio para membros do 1º escalão nazista da Argentina e no Egito, principalmente.

Skorzeny tivera uma passagem pela Espanha de Franco, depois de fugir de um campo de prisioneiros americano na Alemanha, em 1948, onde aguardava por novo julgamento militar, pois havia sido absolvido de algumas acusações de crimes de guerra, em 1947. Quando chamado por Gehlen, em 1953, Skorzeny estava na Argentina, onde fazia parte do círculo de assessores de Perón. Enviado ao Cairo, passou a assessorar Nasser pessoalmente, juntamente com Miles Copeland, que se reportava diretamente a Dules. Ambos ajudaram a dizimar a Irmandade Muçulmana, então liderada por Sayd Qutb, que havia apoiado o golpe de Nasser contra Farouk, mas logo passou a opor-se ao novo regime laico.

A aliança dos EUA com Nasser perdurou até 1956, mas desde 1954, ao assumir o poder, o líder nacionalista passou a adotar posições independentes, que o confrontaram com ingleses e franceses, ao mesmo tempo que o distanciavam dos EUA e o aproximavam da União Soviética, em busca de apoio militar e financeiro. Em 1956, a tentativa de nacionalizar o Canal de Suez deflagrou uma guerra com os israelenses, apoiados por ingleses e franceses, que enfrentaram a oposição dos americanos, até então mais interessados em manter relações próximas com o Egito e exercerem alguma forma de controle sobre o canal.

A decisão de Nasser de aproximar-se da União Soviética distanciou-o dos EUA, depois da Guerra de Suez. Washington passou a adotar políticas cada vez mais pró-Israel e o Egito tornou-se definitivamente aliado dos soviéticos. Mas Nasser jamais abriu mão de seus colaboradores e assessores alemães. O Egito passou a ser o principal reduto de oficiais da SS graduados, que foram integrados aos seus serviços de informação, à sua polícia política e ao seu sistema de propaganda. Além de Skorzeni, entre os mais conhecidos, fixaram-se no Egito os generais da SS Oskar Dillewanger, chefe da Brigada Penal das SS, Heinrich Siliman, chefe da Gestapo no Ulm, Joachim Daumling, que chefiou a Gestapo en Dusseldorf e depois na Croácia, Alois Moser, que atuou na Ucrânia, o general de exércitoWilhelm Fahrmbacher, incorporado ao estado-maior egípcio, Johannes Von Leers, do Ministério da Propaganda de Goebels e que, depois de fugir da Argentina, após a deposição de Perón, em 1954, transferiu-se para o Cairo, onde converteu-se ao islamismo e chefiou a Agência de Propaganda de Nasser. Skorzeny morreu milionário em Madrid, em 1975.

Qutb e a Irmandade Muçulmana, afastados por Nasser de qualquer influência no novo regime que ajudaram a implantar, aderiram à luta armada para derrubá-lo. Em fevereiro de 1954, a Irmandade foi tornada ilegal e em outubro do mesmo ano seus membros tentaram assassinar Nasser. Quatro mil militantes da Irmandade foram presos e executados. Milhares fugiram para a Síria, Arábia Saudita, Jordânia e Líbano. Qutb foi preso e sentenciado a dez anos de prisão. Ao ser libertado, planejou novo atentado contra Nasser, em 1965. Em 1966, depois de julgado, foi condenado e enforcado.

Integrista radical, antissemita e antidemocrático, Qutb escreveu, entre outros, o ensaio Ma'arakutuna Ma'a al–Yahud (Nossa Luta com os Judeus- 1950), de grande penetração no mundo islâmico de hoje, no qual sustenta que a luta entre o Islã e os judeus é decisiva e definitiva e que os judeus não ficarão satisfeitos até que o Islã seja destruído.. A Irmandade Muçulmana , pela primeira vez em sua história no poder no Egito, é a matriz dos grupos islâmicos radicais palestinos. Da Jihad, que atua, hoje, abertamente nos territórios palestinos sob ocupação israelense; Do Hamas , que controla a Faixa de Gaza, além da globalizada Al Qaida ( A Base). Todos são movimentos que seguem à risca as diretrizes de Qutb. Osama Bin Laden foi discípulo do palestino Abdullah Zallam, ideólogo da Irmandade e professor na Universidade Abd Al Aziz, em Jedah, Arábia Saudita. Em Jedah, Bin Laden associou-se ao médico egípcio Aymann Al Zawahiri, membro da Irmandade desde os 13 anos e, hoje, o primeiro em comando da Al-Qaida. Na visão de grande parte dos muçulmanos, os dois representam a autêntica resistência islâmica aos valores do Ocidente, tal como defendida por Al Bana e Qutb, os primeiros a denunciarem Israel como representante da cultura ocidental.

28 de novembro de 2012
Luis Milman é jornalista.

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