"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 9 de junho de 2013

O GOVERNO OBAMA FERVEU

 

Foi de um computador instalado na Gávea, aprazível bairro da Zona Sul carioca, que partiu a primeira revelação letal da semana publicada pelo diário britânico “The Guardian”. Apoiada por documentos oficiais até então secretíssimos, a reportagem do colunista Glenn Greenwald demonstrou a extensão com que os órgãos de inteligência dos Estados Unidos monitoram os telefones (fixos e celulares) de pelo menos 100 milhões de cidadãos americanos ou residentes naquele país.

Também a segunda bomba sobre as práticas orwellianas do governo Obama, publicada no dia seguinte, teve por coautor o mesmo Greenwald, que há nove anos fixou residência no Rio para poder viver em união estável com o companheiro brasileiro David Michael Miranda — o casal não teria visto de permanência garantido nos Estados Unidos.


Não é de hoje que Greenwald exerce o jornalismo de forma militante e fecunda. Costuma ser obsessivamente investigativo. Também seus quatro livros (dois dos quais entraram para a lista dos mais vendidos) são exaustivos no levantamento de dados sobre abusos do poder político nos Estados Unidos. “Exerço meu jornalismo como um litigante”, declarou dias atrás ao “New York Times”. “Alguém faz uma declaração, parto da suposição de que mente e vou procurar documentos para provar que está mentindo.”

Mas foi com as revelações de agora que esse repórter com jeitão de missionário mórmon entra para o olho do furacão. Dificilmente o Departamento de Justiça deixará de abrir inquérito para caçar e punir as fontes que vazaram as informações sigilosas — e, por que não, quem as divulgou. Nesse caso, a sólida formação de advogado de Greenwald pode vir a lhe ser de boa serventia.

Em essência, foram dois os programas secretos que vieram a público. Ambos se amparam nos tênues limites entre vigilância e privacidade criados na era George Bush e encampados por Obama.

O primeiro, apoiado por uma ordem judicial de um tribunal secreto (a Corte de Vigilância de Inteligência Estrangeira, composta de onze juízes que se reúnem em segredo), permite à Agencia de Segurança Nacional acesso aos registros telefônicos dos cerca de 100 milhões de usuários da Verizon, a maior operadora do país.

A autorização começou a vigorar seis dias após a identificação dos irmãos Tsernaev como autores do atentado terrorista à maratona de Boston, e tem validade de 90 dias. Durante este período, todas as chamadas de telefone fixo ou celular feitas por um assinante da Verizon têm seu registro armazenado por tempo indeterminado — número discado, duração, data, hora, local.

O mesmo se aplica a ligações recebidas, sejam domésticas ou do exterior, independentemente de qualquer suspeita de malfeito. É o chamado monitoramento a granel, ou “metadata”.

O fato de o conteúdo das conversas só poder ser acessado com autorização adicional atenua pouco o potencial de bisbilhotice. Como exemplifica a jornalista Jane Meyer, da revista “New Yorker”, no mundo dos negócios, determinado padrão de telefonemas entre executivos pode revelar um iminente takeover corporativo; ligações para determinados médicos seguidas de chamadas para oncologistas podem revelar um quadro de doença provável, e assim por diante.

É possível que outras operadoras também tenham suas centrais monitoradas. Ou seja, o país todo pode estar no radar da espionagem oficial.

O segundo programa secreto de violação de privacidade revelado foi instituído seis anos atrás. Dadas as suas características, ele pode, literalmente, captar em tempo real o texto que está sendo digitado aqui, palavra por palavra, ou enquanto está sendo transmitido para a Redação do GLOBO.

Trata-se de uma ferramenta que acessa diretamente, e sem a necessidade de autorização judicial, os perfis de usuários da internet no exterior, através dos servidores das maiores empresas digitais com sede nos EUA: Google, Microsoft, Apple, AOL, Skype, Facebook, Yahoo, YouTube. Nada fica fora do alcance dos analistas de inteligência da National Security Agency — nossos áudios, vídeos, fotos, e-mails, documentos.

O vazamento quase simultâneo de documentos comprovando a existência desses dois programas é, em si, intrigante. E talvez indicativo de que algo começa a ferver dentro do governo de Barack Obama.

A começar pela forma como a mídia começa a olhar para o soldado Bradley Manning, acusado de repassar centenas de milhares de documentos dos serviços de inteligência para publicação no WikiLeaks. Manning, de 25 anos, ficou detido por 1.100 dias em condições tortuosas até o início de seu julgamento, iniciado este mês. Se a corte marcial considerá-lo “inimigo do Estado” e julgar que seus atos ajudaram o inimigo (no caso, o terrorismo islâmico), ele será condenado à prisão perpétua.

Mas Manning insiste que pretendia apenas revelar o curso nefasto para o qual embicava o exército dos Estados Unidos na guerra contra o terror. Alega que não pretendia ajudar, intencionalmente, qualquer grupo terrorista.

Que num momento como este, de caça sem complacência a vazadores de segredos, surjam funcionários de inteligência dispostos a correr o risco de vazar documentos secretos é mau sinal para Obama. E bom sinal para o país. “Nenhuma democracia saudável pode ser duradoura quando os atos mais consequentes de quem detém o poder permanecem secretos”, sustenta Glenn Greenwald, autor da publicação do vazamento da semana.

Quando o venerável “New York Times”, como no editorial de quarta-feira, descarta como “platitudes de sempre” a ladainha do governo Obama de que o terrorismo é uma ameaça real e de que o país deve confiar nos mecanismos internos de não violação dos direitos, é bom prestar atenção. A versão eletrônica do mesmo editorial chegou a conter o prenúncio de um rompimento: “O governo agora perdeu toda credibilidade.”

No dia seguinte, em sua edição em papel, três palavrinhas a mais tentaram corrigir o incorrigível: “...perdeu toda credibilidade sobre esta questão.”

A credibilidade de Barack Obama está no pano verde.

09 de junho de 2013
 Dorrit Harazim, O Globo

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