"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 8 de junho de 2013

SCHOPENHAUER E OS CHICOTES DOS CARROCEIROS

Falando outro dia sobre Du Silence, livro de David le Breton, citei Schopenhauer: o nível de ruído que uma pessoa suporta, dizia, é inversamente proporcional à sua inteligência. Cledson Ramos, leitor atento, me envia o texto infra do pensador alemão, que consta em A Arte de Insultar. Suas preocupações não eram nem o rock nem a televisão:

"Não posso deixar de denunciar o estalo verdadeiramente infernal dos chicotes nas vielas rumorosas das cidades como o barulho mais irresponsável e vergonhoso de todos, que rouba da vida toda tranqüilidade e concentração. Nada me dá uma idéia tão clara da obtusidade e da inadvertência dos homens do que a permissão de chicotear. Esse estalo repentino e agudo, que paralisa o cérebro, despedaça e mata qualquer pensamento, deve ser sentido dolorosamente por todos os que tenham dentro da própria cabeça qualquer coisa que se assemelhe a um pensamento: portanto, perturba centenas de pessoas em suas atividades intelectuais, por mais simplórias que sejam, e mais ainda o pensador, em cujas meditações penetra de maneira tão dolorosa e funesta como a espada do carrasco, que separa a cabeça do tronco.

"Nenhum som fere o cérebro de modo tão cortante quanto esse maldito estalo de chicote. Chega-se a sentir a ponta do chicote batendo no cérebro, no qual age como o toque da mão na mimosa pudica, e até por mais tempo. Com todo o respeito pela sacrossanta utilidade, não consigo entender por que um serviçal que conduz uma carroça com areia ou esterco deva receber o privilégio de sufocar o germe de todo pensamento em ascensão no cérebro de dez mil cabeças sucessivamente (meia hora ao longo das ruas da cidade). Marteladas, latidos e gritos de crianças são horríveis, mas o único e verdadeiro assassino de pensamentos é o estalo de chicotes. Parece ter sido criado exclusivamente para triturar todos os momentos bons e de reflexão que vez por outra alguém consegue ter. [...]

"Esse maldito estalar de chicotes não só é desnecessário, como chega a ser inútil. O efeito psíquico desejado nos cavalos, devido ao hábito causado pelo abuso contínuo de tal recurso, diminui e acaba perdendo totalmente seu objetivo: os cavalos não apressam o passo com o estalar do chicote. [...] Supondo-se, porém, que fosse imprescindível usar tal som para lembrar constantemente os cavalos da presença do chicote, bastariam estalos cem vezes mais fracos, pois é sabido que os animais são capazes de perceber até os sinais mais silenciosos, quase imperceptíveis, tanto pela audição quanto pela visão. Os cães adestrados e os canários são exemplos surpreendentes dessa constatação. Por conseguinte, estalar chicotes representa um puro arbítrio, ou até mesmo um escárnio insolente por parte dos trabalhadores braçais em relação aos intelectuais. Tolerar semelhante infâmia nas cidades é uma barbárie grosseira e uma injustiça; tanto mais quanto seria até mesmo fácil eliminar, por decreto policial, um nó na ponta de cada chicote.

"Não há mal nenhum em chamar a atenção dos proletários para o trabalho intelectual realizado pelas classes que lhe são superiores, pois estes temem o trabalho intelectual mais do que tudo. Nem todos os filantropos do mundo, com todas as assembléias legislativas, que por boas razões são contra as punições corporais, poderão me convencer de que um serviçal, que cavalga pelas ruas estreitas de uma cidade muito populosa, conduzindo livremente cavalos do correio ou montando um cavalo de carroça desatado, ou até mesmo que caminha ao lado dos animais, estalando incessantemente e com toda a sua força o seu longuíssimo chicote, não mereça ser obrigado a desmontar imediatamente para receber cinco bastonadas bem dadas. [...]

"Terá o intelecto pensante de ser o único a nunca experimentar a menor consideração, nem a menor proteção, menos ainda respeito, em prol desse cuidado tão generalizado com o corpo e de todas as formas de contentá-lo? Carroceiros, carregadores, pessoas ociosas que ficam nas esquinas e similares são os animais de carga da sociedade humana; devem, sem dúvida, ser tratados humanamente, com justiça, benevolência, indulgência e cuidado: mas não lhes deve ser permitido que, com o rumor insolente que produzem, tornem-se um impedimento às aspirações elevadas do gênero humano. Eu gostaria de saber quantos grandes e belos pensamentos já foram banidos do mundo pelo estalar desses chicotes. Se eu fosse um dirigente, criaria na cabeça dos carroceiros um nexus idearum (nexo de idéias) indestrutível entre estalar chicotes e receber bastonadas."


08 de junho de 2013
janer cristaldo

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