"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O IMBROGLIO FICHA LIMPA

O Supremo se meteu num formidável imbróglio com o Ficha Limpa porque ministros resolveram ignorar princípios consagrados do estado de direito

Vocês têm paciência para um texto relativamente longo sobre o Ficha Limpa, essa lei que a tantos seduz e que traz consigo um coquetel de inconstitucionalidades? Se eu estivesse aqui para dar apenas opiniões destinadas ao aplauso de todos os meus leitores habituais, então eu seria um articulista inútil. Às vezes, sei que incomodo mesmo os que apreciam o que escrevo. Não fosse assim, blog pra quê? Vamos lá.

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A tal lei da Ficha Limpa tem tudo para entrar para a história como um dos maiores rolos em que se meteu o Supremo. E a razão é simples: princípios consagrados do direito estão sendo jogados no lixo com o auxílio de sofismas, subterfúgios, retórica subcondoreira e afins. Existe o princípio da presunção de inocência. Ninguém pode ser considerado culpado até qaue não se tenha a sentença transitada em julgado — isto é, quando não couber mais recurso.

Sustenta a OAB, por exemplo, que isso não vale para o direito eleitoral. Por que não valeria? É um arcano que a entidade guarda só para si — e também o guardam os ministros que endossam a tese. A síntese do pensamento é esta: “Não cabe porque não cabe!” Quem ousa um tantinho afirma que a “moralidade” é mais importante do que os direitos individuais. Essa é a porta do capeta em direito. O critério acaba sendo subjetivo e sujeito às maiorias de ocasião.

A tal “moralidade” estaria assentada nos “sentimentos da maioria do nosso povo”. Se, amanhã, por qualquer razão, a “maioria do nosso povo” houver por bem que não devem se candidatar os louros de olhos azuis ou os pretos, alguém poderá, com a mesma lógica com que garante que a presunção de inocência não vale para o direito eleitoral (ou seja, nenhuma!), sustentar que o princípio da igualdade perante a lei e as cláusulas pétreas não valem para o direito eleitoral. Afinal, é o “sentimento da maioria do nosso povo”!!! Talvez o ministro Joaquim Barbosa considere que a Constituição é só coisa da “democracia formal”. Que valha, então, a informal!

Caros leitores, sei que este é um texto incômodo. Bate aquela vontade de “fazer alguma coisa”, né? Mas é preciso fazer “alguma coisa” que não jogue no lixo princípios do estado de direito, de modo a tomar decisões que, sem prejuízo de pegar um bandido ou outro, acabe solapando garantias da maioria. Vamos ver: quer a lei, e a maioria no Supremo tende a condescender com isso, que pessoas condenadas por um colegiado de juízes estão inelegíveis. Certo! Negar que isso seja uma punição é estúpido, é irracional. E se o sujeito for absolvido depois, na instância superior? E aquela punição pregressa? “Ah, não era punição, era só…” Só o quê???

“Só estávamos decidindo quem podia e quem não podia se eleger”. Sim, mas essa decisão há de ser tomada com base em alguma coisa, em algum código. Nesse caso, é evidente que se escolheu a decisão do colegiado de juízes como sentença de exclusão do jogo eleitoral. Amanhã, maiorias de ocasião podem optar por algum exotismo qualquer.

Justiça paralela

A Lei do Ficha Limpa abriga o absurdo, acolhido pelo ministro Luiz Fux, de tornar inelegíveis pessoas que tenham sido punidas por órgãos de classe. Digamos que o sujeito não seja bem-visto, em razão de um evento qualquer (perfil ideológico, por exemplo), pelos líderes da corporação a que pertence. Uma conspiração da turminha pode lhe cassar direitos políticos. TRANSFORMA-SE, ASSIM, UM ÓRGÃO DE CLASSE NUM TRIBUNAL. Transforma-se, assim, uma entidade de cunho meramente sindical em um braço da Justiça. É uma bestialidade!

O caso Jader Barbalho e um petista na fila

O que precisa ficar claro é que o Ficha Limpa é um baita imbróglio jurídico e que há ministros no Supremo fazendo tudo o que um magistrado não deve fazer: ouvir a voz rouca das ruas e ignorar a voz clara das leis. A Lei da Ficha Limpa foi aprovada a menos de um ano das eleições de 2010, o que impedia, por dispositivo constitucional, a sua aplicação naquele pleito. Mas foi aplicada, o que é um outro estupro constitucional. De novo, veio a falácia de que não se tratava de uma “punição”…

Muito bem, em outubro de 2010, Jader Barbalho, do PMDB do Pará, recorreu ao Supremo sustentando o óbvio: a lei não poderia valer naquela eleição. O tribunal estava com apenas 10 ministros. Luiz Fux ainda não havia sido indicado. Houve um empate: 5 a 5. César Peluso, presidente, fez o inacreditável: decidiu não decidir. Mesmo podendo votar de novo como presidente, preferiu aguardar a chegada do 11º elemento.

Fux chegou e votou: a lei não poderia ter sido aplicada em 2010. Flecha de Lima (PSDB) e Jader foram os dois candidatos do Pará mais votados para o Senado. Em terceiro lugar, ficou o petista Paulo Rocha. Marinor Brito (PSOL), atualmente com a vaga, obteve apenas a quarta colocação. Quando houve aquele empate, e Peluso manteve, então, temporariamente, a inelegibilidade de Jader (e, pois, de Rocha), Marinor ficou com a cadeira. Dado o voto de Fux pela não-aplicabilidade da lei, Jader fez o óbvio: entrou com um embargo de declaração, cobrando que o Supremo deixasse claro, então, que a vaga era dele, já que a havia perdido em razão de um expediente que o tribunal, por maioria, decidiu que não poderia ter sido aplicado.

Ledo engano! Joaquim Barbosa, o relator, indeferiu o pedido de Jader, no que foi seguido por Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e, pasmem!!!, o mesmo Luiz Fux que havia votado contra a aplicação da Ficha Limpa em 2010. Por que Fux votou contra a sua aplicação geral e, na prática, a favor de sua aplicação só para Jader? Não sei! A sua vasta cabeleira deve esconder segredos que escapam à lógica comezinha. Como o tribunal está de novo com 10 pessoas e como se aguarda, outra vez, a chegada do 11º elemento, então se decidiu esperar a chegada da nova ministra.

Agora o petista

Mas atenção! De modo correto, a meu ver, Dias Toffoli votou pelo acolhimento da ação. Afinal de contas, se a Lei do Ficha Limpa não valia para 2010 e se Jader foi impedido de tomar posse por causa dela, então se viverá a situação especialíssima de uma lei que serve para punir uma só pessoa: será a “Lei Jader”.

A tese de Joaquim Barbosa, à qual aderiu alegremente um Ricardo Lewandowski, que passou de duro adversário da lei a admirador, é que embargos de declaração não podem ser tornar ações rescisórias… Ah! Ocorre que, naquele outubro de 2010, ficou evidente a validade temporária da decisão do TSE, que havia declarado a inelegibilidade de Jader. A definitiva veio com o voto de Fux: pela elegibilidade!

Rosa Maria Weber, quando assumir, vai decidir. Peço que vocês prestem atenção ao imbróglio. Sintetizo e alerto para um desfecho possível, ainda que maluco:

1) Por seis a cinco, com o voto de Luis Fux, decidiu-se que a lei não poderia ter sido aplicada em 2010, o que dá a vaga a Jader;

2) Por cinco a cinco, também com o voto de Fux (contra Jader), ainda que inexplicável, o caso ficou em suspenso porque Joaquim Barbosa sustentou que embargo de declaração não é ação rescisória (ocorre que o STF não havida decidido nada; havia decidido não decidir);

3) caso prevaleça o entendimento de Joaquim Barbosa, Jader está fora do Senado, mesmo contra a decisão do próprio STF no que respeita o mérito;

4) nada impede que se considere o caso Jader superado — sem revisão, pois —, mas não, por exemplo, o caso Paulo Rocha, do PT;

5) o petista Paulo Rocha ficou em terceiro lugar; não assumiu a vaga de Jader porque também foi pego pelo Ficha Limpa. Ocorre que seu caso ainda não foi julgado. Digamos que se mantenha a decisão sobre Jader porque a rescisão seria inadmissível. Nada impede que a segunda vaga fique com o petista e mensaleiro… Paulo Rocha. Afinal, não seria preciso fazer “rescisão” nenhuma!

Encerro

Olhem aqui, meus caros, um tribunal que se mete a fazer uma lambança desse tamanho está num mau caminho. E tudo isso ocorre porque princípios consagrados do estado de direito estão sendo relativizados com base em sofismas quase infantis. Uma decisão que pode punir Jader e dar a vaga a Paulo Rocha é, em essência, maluca. Ainda que ambos venham a ser punidos, outros eleitos, Brasil afora, em situação idêntica, já tomaram posse.

A minha simpatia por Jader, com quem nunca falei, é inferior a zero. Por tudo que sei de sua trajetória, ele está entre aquelas pessoas que eu jamais gostaria de ver no Senado. Mas é preciso que se faça isso dentro da lei. Se a gente condescende com decisões que são tomadas ao arrepio da legalidade, ainda que por bons propósitos, abrimos as portas do arbítrio. Aí, chega o momento em que um grupo de juízes, em nome da “justiça social”, declara que há homens que estão acima da lei. Ora, quem declara que há os acima também pode decidir que há os abaixo.

Pode-se chegar ao ponto de ter uma Justiça cujo lema seja: “Aos amigos tudo, menos a lei; aos inimigos, nada; nem a lei!”

Por Reinaldo Azevedo

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