"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 31 de janeiro de 2012

COMO SE DESVIA DINHEIRO NO BRASIL (PARTE 2)

É o caso mais clássico de usurpação. Por meio de uma licitação dirigida, determinada empresa ganha um contrato com o governo. Às vezes, o preço inicial já sai superestimado. No decorrer do serviço, aditivos encarecem a obra. A fartura, depois, é dividida entre corruptos e corruptores. Como são muitas as obras e não há fiscalização suficiente, o ambiente favorece a atuação da malandragem.
Por recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU), os órgãos passaram a contratar empresas supervisoras para acompanhar a aplicação dos recursos. O que seria solução virou problema. Auditores já acharam vários casos de promiscuidade entre quem supervisona e quem faz obras. “Já estamos concluindo que é melhor não ter empresa supervisora. Você só está gastando um dinheiro a mais”, diz Luiz Navarro, secretário executivo da CGU.

Na maioria dos casos, os auditores só conseguem “visualizar” o rombo na prestação final de contas, quando recebem notas fiscais e outros documentos. É tarde. A demora dificulta o rastreamento de desvios, o que afasta a chance de recuperá-los. “Foram precisos mais de dez anos para começar a recuperar recursos de um famoso escândalo de corrupção”, diz o advogado Tércio Tokano, coordenador-geral de Defesa da Probidade da Advocacia-Geral da União. O “famoso escândalo” é o do fórum trabalhista de São Paulo, que envolveu o desvio de R$ 1 bilhão, em valores atuais, e tornou conhecido o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau.
TRADIÇÃO

Construção da Ferrovia Oeste- Leste. Descobriu-se que os valores orçados estavam muito acima do que seria necessário (Foto: Joa Souza/Ag. A Tarde)

No início de 2011, denúncias com obras derrubaram a cúpula do Ministério dos Transportes, com desdobramentos no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e na Valec, responsável pelas obras ferroviárias. O setor era feudo do PR, partido aliado do Palácio do Planalto. As suspeitas jogavam dúvidas sobre uma série de aditivos em obras de rodovias e ferrovias, todas do Programa de Aceleração do Crescimento.
Aditivos encarecem obras porque incluem providências inexistentes nos projetos básicos. Segundo o próprio governo, os projetos básicos são insuficientes em 90% das obras. A fiscalização identificou vários problemas nos contratos do Dnit e da Valec. Num deles, referente à Ferrovia Oeste-Leste (do litoral baiano ao Tocantins), os valores orçados estavam muito acima do necessário. Em apenas um lote da Oeste-Leste houve um sobrepreço de R$ 35 milhões, mesmo após recomendações do TCU. Ao analisar 17 licitações dos Transportes, auditores constataram prejuízo total de R$ 682 milhões, 13,4% de R$ 5,1 bilhões fiscalizados.

São os que roubam fazendo festa. Estados, municípios e ONGs recebem milhões do governo federal para promover todo tipo de festividade popular. O dinheiro normalmente é liberado para contratar estrutura de palco, equipamentos de som, artistas e material de divulgação. Até foguetório entra no patrocínio. Sem realizar licitação, é comum que a escolha de fornecedores seja pautada por critérios políticos. As contratadas superfaturam os preços de produtos e serviços. E as prestações de contas são fraudadas para acobertar o desvio de recursos. Em alguns casos, há suspeita de que o dinheiro é desviado para os políticos.

Num levantamento recente, com base em convênios firmados pelo Ministério do Turismo, o governo identificou irregularidade em dezenas de contratos com municípios e entidades diversas, inclusive para a realização das tradicionais festas de São João. Já são mais de R$ 13 milhões sendo cobrados de prefeituras. Entre os municípios reprovados, São João da Barra, no Rio de Janeiro, recebeu mais R$ 500 mil para organizar o 6o Circuito Junino. Os responsáveis, segundo a CGU, não apresentaram documentos para comprovar o correto uso de todo o dinheiro.

Em outro levantamento, a CGU mostrou que eram previstas a contratação de 66 bandas para a realização de eventos para festejos juninos em 22 cidades de Pernambuco em 2008. Foram liberados R$ 2,4 milhões. Quando os técnicos receberam a prestação de contas e somaram as notas, identificaram que foram pagos aos artistas R$ 2,3 milhões. Onde foram parar os outros R$ 100 mil? Às vezes, não é possível fazer nem esse tipo de checagem simples, por conta de problemas prosaicos, como a falta de notas fiscais.
BAILE
Festa junina em São João da Barra, Rio de Janeiro, um dos municípios com contas reprovadas. Critérios políticos prevalecem na escolha de fornecedores (Foto: Letícia Pontual/Ag. O Globo )

Outras dificuldades dizem respeito a problemas inerentes aos eventos. Como é possível verificar que os 50 mil panfletos previstos no convênio para a divulgação foram efetivamente impressos? Como saber se foram distribuídos 5 mil ou 50 mil cartazes? Em muitos casos simplesmente não é possível checar. E é aí que os larápios costumam agir.

No fim de 2010, uma denúncia assim derrubou o senador Gim Argello (PTB-DF) da relatoria geral do Orçamento. Havia indícios de que convênios patrocinados por suas emendas estavam recheados de problemas, como superfaturamento e fraudes em prestações de contas.

Em agosto de 2011, o então secretário executivo do Ministério do Turismo, Frederico Costa, e outras 35 pessoas, entre empresários e servidores públicos, foram presos acusados de participar de uma quadrilha que fraudava convênios da pasta. Os recursos deveriam ser aplicados no treinamento em turismo no Amapá. Depois de colher indícios de que pelo menos R$ 4 milhões foram desviados, a Polícia Federal realizou a Operação Voucher. As fraudes, de acordo com as investigações, tinham como pivô o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento de Infraestrutura Sustentável (Ibrasi), sediado em São Paulo. Tudo sugere que se trata do típico caso de desvio por meio de simulação de cursos de qualificação profissional. Às vezes, o mero bom-senso pode ser um aliado da investigação: “Chamou a atenção o fato de uma entidade baseada em São Paulo promover treinamento de pessoas no Amazonas”, diz Luiz Navarro, da CGU. “Foi sinal de que alguém a estava usando para algum ilícito.”

A exemplo do que ocorre com os patrocínios para eventos, os convênios para qualificação de pessoal são um drama para os fiscais. Como comprovar que um determinado grupo de pessoas foi, de fato, treinado pela entidade conveniada? Uma forma é agendar entrevistas com os supostos treinados e conversar com os instrutores. Levantam-se dados como horas de treinamento e o conteúdo aprendido em sala de aula. Dos instrutores, é possível perguntar quanto foi recebido de salário e qual foi o material didático usado. Ainda assim, é sempre muito difícil chegar a 100% de certeza sobre a destinação correta dos recursos.
ESTRANHEZA
O ex-secretário executivo do Turismo Frederico Silva Costa, algemado pela PF, em Brasília. Uma quadrilha fraudava os convênios da pasta
(Foto: Sérgio Lima/Folhapress)

O ditado popular diz que o diabo mora nos detalhes. Nas ocasiões em que os técnicos do governo conseguiram rastrear e identificar irregularidades, muitos dos desvios foram constatados nas particularidades do negócio. Num caso, o material didático apresentado na prestação de contas não era exatamente o mesmo que foi distribuído aos alunos. Em outro, a fiscalização encontrou pessoas inscritas em dois cursos realizados simultaneamente, a mais de 1.000 quilômetros de distância. Piora o fato de ter de correr atrás dessas informações depois que toda a estrutura para a realização dos cursos já foi desmobilizada. Além do Turismo, pastas como Esporte e Trabalho – neste caso com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – se valem de convênios para a qualificação de pessoal.

É o caso da dilapidação em dose dupla. Primeiro, pelo desvio de dinheiro público; segundo, pelo desvirtuamento do princípio da atividade parlamentar.

Funciona assim: cada deputado ou senador pode incluir até R$ 15 milhões por ano no Orçamento da União. O parlamentar coloca o que quiser. Pode ser a construção de uma ponte, a contratação de uma ONG ou a compra de um equipamento. Assim, considerando quatro anos de mandato, cada um dos 513 deputados pode influenciar no destino de R$ 60 milhões ao longo de uma legislatura. São, portanto, quase R$ 30,8 bilhões potencialmente manipuláveis. No Senado, com 81 parlamentares e mandato de oito anos, o valor total potencialmente sob influência direta da Casa chega a R$ 9,7 bilhões por legislatura. Total do Congresso: R$ 40,5 bilhões. É um dinheiro e tanto para um poder cuja responsabilidade institucional não é gastar, mas fiscalizar o governo e aprovar o Orçamento.

Ao direcionar gastos da União por meio de emendas, parlamentares podem favorecer empresas que financiaram suas campanhas, praticar clientelismo, fazer uso eleitoreiro de obras, entre tantas outras delinquências éticas, políticas e legais. Foi por meio das emendas parlamentares que nasceu, cresceu e floresceu a máfia das sanguessugas, um dos maiores escândalos recentes do país. Em 2006, a PF investigou contratos firmados entre Estados e municípios com uma empresa que atuava no comércio de ambulâncias. A investigação encontrou irregularidades nas licitações, como superfaturamento, e veículos recauchutados entregues como novos. As fraudes somavam mais de R$ 110 milhões. Uma CPI foi instalada no Congresso e apontou o envolvimento de mais de 90 parlamentares nas irregularidades. A comissão pediu a abertura de processo de cassação contra 69 deputados e três senadores. Não deu em nada. E, apesar do escândalo, as emendas parlamentares não deixaram de existir. Pelo contrário, nos oito anos do governo Lula, elas saltaram de R$ 2 milhões para R$ 15 milhões por ano, por parlamentar.
CARONA
Ambulância em Sorocaba, São Paulo, que foi alvo da CPI das Sanguessugas. Apesar dos problemas, as emendas cresceram (Foto: Epitácio Pessoa/AE )

Além das brechas para a ladroagem, a possibilidade de alterar o Orçamento por emendas pode servir de instrumento para o governo cooptar parlamentares para sua base de apoio. É o segundo efeito nocivo das emendas. Para viabilizar a liberação dos recursos, deputados e senadores precisam negociar com o Palácio do Planalto. Em tese, ser integrante da base seria uma vantagem. A existência desse balcão possibilita que o governo jogue com a conveniência de brecar ou liberar os recursos dependendo da postura do congressista. É uma distorção completa da função parlamentar.

A perversidade disso está em usar um instrumento normalmente associado a práticas positivas para rapinar, pilhar, subtrair. A parceria com organizações não governamentais é uma forma encontrada pela administração pública para implementar políticas sociais no Brasil com mais agilidade e maior capilaridade. Essas entidades têm uma penetração impensável para os gestores públicos. A parceria, no entanto, muitas vezes mostra-se extremamente frágil. As regras que regem essas entidades são mais flexíveis. Até o final do ano passado, por exemplo, não era preciso fazer licitações para escolher as ONGs que receberiam recursos públicos. É por essas brechas que ocorre a gatunagem.

Somente em 2011, mais de 73 mil entidades repartiram mais de R$ 2,7 bilhões de dinheiro público. O problema é que não há garantia sobre a efetiva aplicação dos recursos. “Nada impede que hoje uma prefeitura faça um convênio com uma ONG para tocar a Educação inteira do município. Ou a Saúde inteira. Ou uma obra”, diz Luiz Navarro, da CGU. “Aí caímos no problema real: quem escolheu a ONG? Por que ela foi escolhida? A quem ela pertence? A gente vê coisas absurdas nas prestações de contas, como ONGs ditas sociais que cuidam até de trânsito.”
QUEM ESCOLHE AS ONGS?
O policial João Dias. Ele é dono de ONGs que precisam devolver mais de R$ 3 milhões ao governo, numa crise que resultou na demissão do ministro Orlando Silva (Foto: Sergio Lima/Folhapress)

Em 2011, duas ONGs de Brasília que receberam verbas federais protagonizaram o escândalo que resultou na demissão do ministro Orlando Silva da pasta do Esporte. As entidades pertencem ao policial militar João Dias, acusado de desviar milhões dos cofres públicos entregues a ele para oferecer atividades esportivas para crianças carentes. O Ministério Público cobra de João Dias a devolução de mais de R$ 3 milhões. Ele é acusado de forjar documentos para prestar contas ao ministério. As autoridades apuram o pagamento de propina a políticos, incluindo o ex-ministro e atual governador de Brasília, Agnelo Queiroz (PT).

A vulnerabilidade do sistema começa na escolha das entidades que vão receber os recursos. Como não era preciso fazer licitação, os critérios políticos muitas vezes prevaleciam em detrimento do rigor ou da competência técnica. Uma vez contratada, a ONG tem liberdade para subcontratar e escolher seus fornecedores fazendo apenas uma cotação rudimentar de preços. A enorme pulverização dos recursos

Daria para dizer que é a modalidade da moda, talvez a mais contemporânea. Ganhou incontestável notoriedade por ser considerada a fonte primária do mensalão, a distribuição de dinheiro a parlamentares da base aliada do governo Lula em troca de apoio político no Congresso.

No caso do mensalão, o dinheiro público desviado seria proveniente de contratos de publicidade firmados pelo governo com o empresário e publicitário Marcos Valério. Essa foi a conclusão da Polícia Federal. A parcela mais significativa dos recursos, segundo a investigação, saiu dos cofres do Banco do Brasil, de um fundo de publicidade chamado Visanet. Esse Visanet é destinado a ações de maketing do cartão da bandeira Visa. As agências de Valério produziram ações publicitárias, mas a maioria dos valores repassados pelo governo teria servido para abastecer o mensalão. Caberá aos ministros do Supremo Tribunal Federal, em julgamento previsto para este ano, dizer se essa tese procede.

Numa manifestação sobre o caso, o procurador Lucas Furtado, do TCU, disse que o grosso da corrupção migrou de obras para contratos de publicidade, principalmente com as estatais. “Os corruptos migraram de grandes obras públicas para contratos de publicidade porque é mais difícil fiscalizar”, disse. Furtado afirmou que, desde o escândalo de desvio de recursos do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (o escândalo do juiz Lalau), as grandes obras públicas passaram a ser mais fiscalizadas, coibindo o aparecimento de irregularidades.
ELO
O empresário Marcos Valério. Ele é acusado de ter viabilizado o mensalão por meio de suas agências
(Foto: Beto Barata/AE )

Auditorias do próprio TCU e da CGU têm identificado problemas em ações publicitárias contratadas pelo governo. Em muitos casos já apurados, os editais para escolher as agências de publicidade são feitos para favorecer determinadas empresas. É comum as concorrentes apresentarem preços fictícios nas propostas. Além disso, as agências “vencedoras” subcontratam empresas ligadas a políticos para realizar serviços.

tabela consultorias (Foto: reprodução)
No ano passado, ÉPOCA publicou uma reportagem sobre a contratação de serviços de consultoria pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no Amapá. O órgão firmou um convênio de R$ 6 milhões com a Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque (Apitu). As investigações da CGU revelaram que pelo menos metade dos recursos foi desviada. A tramoia envolveu serviços de consultoria que simplesmente nunca foram prestados. Das contas da empresa contratada pela ONG para realizar estudos sobre a comunidade indígena, o dinheiro saiu direto para o cofre dos comitês eleitorais do PMDB no Amapá. Simples assim. No fim, a maracutaia acabou servindo para o financiamento de campanhas eleitorais de prefeitos ligados ao partido.

Casos como o do Amapá têm se multiplicado pelos órgãos federais, estaduais e municipais. Como estabelecer o valor justo de uma consultoria? Como comparar as relações de custo-benefício de diferentes consultores? As respostas são sempre subjetivas, terreno perfeito para a bandidagem.

Para começar, serviços de consultoria somente deveriam ser contratados para a execução de atividades que, comprovadamente, não possam ser desempenhadas por servidores permanentes da administração pública. Mas não é bem isso o que se observa. Usa-se o critério de “notória especialização” para justificar a contratação de consultores (pessoas físicas ou jurídicas) sem fazer licitação, outro conceito nada objetivo.

RISCO
Sede de associação indígena sob suspeita no Amapá. As consultorias têm se multiplicado (Foto: Diario do Amapá)
Em muitos casos, as empresas contratadas pertencem a pessoas ligadas ao político que determinou ou influenciou a contratação. O desvio ocorre quando o serviço a ser feito não existe ou, se existe, não é parcial ou totalmente executado. A empresa de consultoria recebe o pagamento, apresenta uma papelada qualquer como se fosse produto de muito estudo e análise e repassa o dinheiro arrecadado a políticos ou agentes públicos envolvidos em sua própria contratação.
31 de janeiro de 2012
(Revista Época)

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