"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

ÁGUAS PASSADAS E MAREMOTOS FUTUROS

Ao Pompéia, que deu asas a meus olhos de menino. Ao Almir Pernambuquinho, que enfiou a cara na lama (lembrai-vos de 67!) sem sujar a alma.

Morreu Orlando Batista. Quem ? Ele mesmo: Orlando Batista. Rádio Mauá, anos 60. Às 18 horas, um locutor clássico, discreto, comandava um programa esportivo. Raro negro nesta área.

O prefixo não podia ser melhor: Um a zero, do Pixinguinha (quantos, hoje, fazem esta linda comunicação esporte-música de boa qualidade ?). Vascaíno roxo, Orlando não discriminava os “adversários”.

Naquela época, o campeonato carioca tinha jogos disputadíssimos mesmo com os chamados “pequenos”. Nós, rubro-negros, jamais esqueceremos o 2 x 0 que o Bonsucesso sapecou em 1968, abrindo caminho para o título do Botafogo na Taça Guanabara.

O América, que anda num triste processo de decadência, sempre disputou, parelho, os títulos cariocas. Campeão em 1960, excursionava no exterior sempre com sucesso. 29 de janeiro de 1962. Ainda com vários remanescentes da campanha de 60, os Diabos meteram seis a zero num combinado argentino, em Buenos Aires.

Hoje, qualquer joguinho dos nossos chamados “grandes” contra times medíocres vira páreo duro. Timecos bolivianos, peruanos e assemelhados metem medo em estrelas pretensiosas, que sobrevivem de glórias passadas.

Nostalgia é um sentimento traiçoeiro. Woody Allen tratou disso, de forma inteligente, em Meia-noite em Paris. O passado exerce um fascínio que, no limite, atribui ao que desapareceu todas as virtudes. Com a permissão do Ruy Castro, vou adiante. A gente costuma suspirar pela época em que o trânsito tinha menos carros, o tempo corria sem tanta ansiedade, as relações pareciam menos mercantilizadas, os edifícios eram exceções no mar de casas com quintais.

Acontece que, nessa mesma época, morria-se muito mais cedo, luz e água faltavam com regularidade (meus contemporâneos devem se lembrar dos apagões diários nos anos 60; lata d’água na cabeça não tinha só no morro, eu mesmo cansei de carregar água em baldes, recolhida em cisternas), namoro só com supervisão vitoriana, telefone era artigo de luxo (e funcionava muito mal).

Daí que, com as exceções de praxe, é melhor não adocicar o que sempre teve um tom mesclado. Preto no branco, e não preto ou branco. João Ubaldo Ribeiro disse, com a conhecida ironia, que “Deus não tem pressa nenhuma, para Ele tudo é ontem, hoje e amanhã, só quem vive dentro do tempo somos nós”. Eu acrescentaria: Deus e os chineses.

Do futebol, não guardo ilusões. Hoje, business as usual, a paixão virou uma prostituta. Dentro de campo, a identidade clubística cedeu espaço à fábrica de dinheiro. Fora, os negócios, não raro mafiosos, dão as mãos a instintos bestiais de torcidas organizadas que não fazem jus à memória de Jaime de Carvalho e Dulce Rosalina.

Venho da pré-história, quando um jogador fazia carreira completa no mesmo clube, dos juvenis aos profissionais, passando pelos aspirantes (desculpem a recaída nostálgica). Agora, nas fotos aparecem patrocínios e muitos, muitos, cifrões. Neymar, por exemplo, teve sua “marca” avaliada em R$ 122 milhões. É sempre assim no capitalismo. Tudo vira comércio, tudo se compra e vende. A alma inclusive.

Num Fla x Flu esquecido no tempo, vi uma cena épica. Carlos Alberto, então promissor ponta-direita do Flamengo, recebe uma entrada criminosa do lateral-esquerdo do Fluminense. Cai gritando de dor. Pela regra, não era possível substituí-lo. Mesmo lesionado, mancando, Carlos Alberto se recusa a sair de campo. Num último esforço, domina a bola, dá um drible da vaca no adversário, vai à linha de fundo e centra. Deu em gol ? Não me lembro. Só sei que ele desabou e saiu de maca. O pequeno gesto, que encantou o menino envolvido pela massa hipnotizada, jamais aconteceria hoje.

Um dos meus gurus esportivos (atenção patrulhas: eu disse esportivos), Juca Kfouri, reproduziu recentemente algumas perguntas que o jornalista argentino Ezequiel Fernandez Moores fez sobre o futebol argentino, mas que valem, sem tirar uma vírgula, para o Brasilzão.

Em que momento nossa história foi substituída por histeria? Quando os chefes de torcidas uniformizadas passaram a disputar espaço com os craques? Quando o épico saiu do campo para as arquibancadas? Quando o amor ao futebol virou show artificial? Quando passamos a acreditar que o mais importante é ganhar? Quando passamos a privilegiar a luta em vez de o jogo? Quando os craques passaram a ser ativos dos fundos de investimento?

Transcrito do blog de Juca Kfouri
Jacques Gruman
02 de fevereiro de 2012

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