"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO, DE WOODSTOCK À CRACOLÂNDIA

Em 2000, o escritor Ignácio de Loyola Brandão partiu com a mulher, Márcia, e um casal de primos numa viagem à Nova Inglaterra – o pedaço dos Estados Unidos considerado o maior reduto de escritores por quilômetro quadrado. Loyola estava em busca de Woodstock, não como referência geográfica, mas como a imagem mítica que conservava do histórico festival de música em que rolaram, em 1969, sob o lema “Paz e amor”, muito sexo, muitas drogas e muito rock and roll. Mais de uma década depois, ele transformou as lembranças e anotações daquela viagem no livro Acordei em Woodstock – Viagens, memórias, perplexidades (Global, 288 pgs. R$35).

No relato de Loyola, ganha destaque o contato com as pistas de diversos escritores deixadas pelo caminho – J. D. Salinger, Herman Melville, Emily Dickinson, Robert Frost, Mark Twain e Louisa May Alcott, para só citar alguns. Misturando fantasia e realidade, registro documental e sonho psicodélico, Loyola reflete sobre rebeldia e ideais perdidos, sobre a ficção e a memória, confunde sonhos pessoais e coletivos. Nesta entrevista, o autor de Zero, Não verás país nenhum e O verde violentou o Muro lembra sua juventude em Araraquara, explica seu processo de criação e fala sobre a viagem singular no tempo e no espaço que resultou em seu novo livro – e também sobre um projeto de contracultura diante do qual o nosso presente dominado pelo consumo parece sombrio: “Estamos virando uma imensa Cracolândia”, afirma.



- Fale sobre o processo de criação de Acordei em Woodstock, que parece misturar diferentes gêneros – ficção, livro de viagem, memórias. Por que demorou 10 anos para escrever sobre aquela viagem?

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: Tenho o costume de anotar. Vem dos tempos de reportagem na Última Hora, o jornal. Não havia gravadores, anotávamos tudo à mão, desenvolvemos a memória. Nunca deixei de levar um caderninho no bolso. Tenho milhares. Anoto situações, imagens, frases, nomes, imagens, filmes, preços, comidas, vinhos, olhares, gestos, tiques. Em viagem uso cadernos, aqueles Claire Fontaine dos estudantes franceses, que compro aos montes em Paris, na Jeune Gibert. Adoro escrever à mão. No avião, levo caderno em lugar de laptop, o que causa espécie aos executivos que têm laptops, Ipass, iPods, iPuts, iPhones. Cada vez que volto, escrevo, para mim, um livro sobre a viagem que fiz. Assim foi com a viagem à Nova Inglaterra. O volume tinha 250 laudas. Fui , ao longo dos anos, cortando, enxertando, acrescentando, reescrevendo. Quando vi, estava virando viagem por dentro de mim, da memória. Havia fantasia, infância, imaginação, perplexidades, descobertas súbitas, como aquela de quem foi Charles Fawcett.

Há momentos de minha vida que ficaram muito marcados dentro de mim. Uma estada em Roma em 1963, os dois anos na Alemanha em 1980, o tempo de critico de cinema, o repórter, o editor de Planeta, mulheres que foram fundamentais. Nesta viagem aos Estados Unidos cordéis foram sendo puxados aqui e ali, misturados com leituras, mitos, cinema, ficção, ícones, frustrações. Salinger, Scott Fitzgerald (que eu quis ser na juventude), Fellini (minha obsessão), os sonhos não realizados (dirigir filmes), os livros incompletos, a religião, mulheres como Ítala Nandi ou Marlene França ou Joana Fomm ou Helena Ignez, as que amei, ou Costinha – infância – as que ficaram platônicas. O livro é um liquidificador. Inventei um gênero? Provavelmente, porque não há como classificar. Aliás, acho que de tempos em tempo (desde Zero) saio do convencional e trago questionamentos quanto a gêneros. O Verde Violentou o Muro é viagem ou diário ou o quê? Veia Bailarina é o quê? Quanto a Acordei em Woodstock, um dia decidi que não havia sentido mexer mais naquele original e publiquei.

- Qual era sua relação com a contracultura na época do festival de Woodstock? Que informações chegavam a você sobre as manifestações estudantis nos Estados Unidos e na Europa? Você se identificava com aquele espírito rebelde?

LOYOLA: Em 1969 vivíamos o AI-5, a censura, a ditadura. Contracultura era ir contra o regime, era batalhar contra a censura. Catávamos as informações em jornais estrangeiros, ouvíamos os cantores rebeldes, cultivávamos Joan Baez, nossa musa, Bob Dylan, Joe Cocker, e principalmente endeusávamos, achávamos o máximo a rebeldia de Janis Joplin. Descobrimos a beat generation por meio do Jornal do Brasil dos sábados. Líamos sobre e discutíamos Kerouac, Ginsberg, Corso, Burroughs no quarto do Zé Celso Martinez Correia, do Oficina, na pensão da Alameda Santos, 93, em São Paulo. Lemos On the road primeiro em espanhol, numa edição argentina. Minha primeira grande rebeldia foi usar uma camisa vermelha em Araraquara em 1954. Homem não usava cor, só azul, verde escuro, branco. Prossegui fugindo do provincianismo do interior. Dançamos rock, com Elvis Presley. Nos masturbamos com Brigitte Bardot pelada e adorando as personagens amorais que ela representava.

- Qual seria o sentido do slogan sexo, drogas e rockn’roll hoje?

LOYOLA: Pura caretice. Sexo, fizemos de tudo. Drogas, nos anos 70 tomamos ácidos, chá de maconha e haxixe, chá de lirio. Este deixou muita gente louca. Rock? Hoje é o heavy metal, o Techno, o pum pum pum.

- Você considera que a visão de mundo simbolizada por Woodstock foi definitivamente derrotada pelo consumismo materialista e neoliberal? Você teve essa sensação durante a viagem ou enxergou resquícios do espírito libertário dos anos 60/70?

LOYOLA: Hoje é culto ao corpo, academias, silicone, botox, esteróides, plásticas de todos os tipos, homens usando cremes, metrossexuais, grifes, BBB, celebridade a qualquer custo, inexistência da privacidade, todo mundo falando de sexo em qualquer programa, qualquer revista, CQC, Pânico, reality shows, enriquecer a qualquer preço, corrupção generalizada, dinheiro na cueca, marketing, personals de todos os tipos, para tudo. Estamos prisioneiros do mercado, do financeiro, do jugo econômico, da demagogia.

- Depois da viagem que você fez à Nova Inglaterra, em 2000, o mundo foi abalado pelo 11 de Setembro e pela crise econômica de 2008, para só citar dois exemplos. Você acha que nos distanciamos mais ainda da contracultura e que o mundo está se “encaretando” cada vez mais?

LOYOLA: O mundo ficou muito chato, o homem é cada vez mais inviável. Os funcionários da prefeitura do Rio de Janeiro roubando os bens das vitimas na queda dos edifícios é algo tenebroso. Assim como as atitudes dos ministros, da politica suja, do comandante que foge do navio… Gente, o Brasil é o BBB, é o Mulheres Ricas, é o Michel Teló? Estamos virando uma imensa cracolândia. Vade retro Satanás!

- Com que autores você dialoga? E quais são suas re-leituras hoje?

LOYOLA: Sempre tentei dialogar com Graciliano Ramos. Angustia dá de vinte em A Náusea, de Sartre. Com Faulkner. Fui muito tocado por Luz em Agosto, O Som e a Fúria e Enquanto Agonizo. Por O Delfim, de Cardoso Pires. Por Quem Matou Pacifico, de Maria Alice Barroso. Por O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Fui Julien Sorel. Assim como fui o personagem de Uma Tragédia Americana da Dreiser. Fui Robinson Crusoe. Adorei Vida, Modo de Usar, de Georges Perec. Um livro que gostaria de ter escrito. Assim como O Tempo e o Vento, do Erico. Também queria ter escrito A Leste do Eden, de Steinbeck

- Como você avalia a literatura brasileira hoje? Considera que os novos autores têm o mesmo impacto e importância que você teve na sociedade brasileira com “Zero”, por exemplo? A literatura ocupa um espaço social menor hoje?

LOYOLA: Gosto de Marçal Aquino, de Ivana Bentes, de Rubens Figueiredo, Raymundo Carrero, Antonio Torres, Luis Pimentel, Alberto Mussa, Tatiana Salem Levy, Michel Laub, Menalton Braff, Garcia Rosa. O resto deve ser respondido pelos críticos e ensaístas e teóricos que estudaram para isso, para nos analisarem, nos situarem. Quanto a Zero levo em mim um desconforto, uma estranha questão: acabou sendo um livro único dentro do panorama. Nunca imitado, nunca fez escola, nunca influenciou, nunca inspirou. De qualquer modo ainda encontro por este Brasil gente que foi impactada por Zero aos 20 anos, aos 30, que o traz na cabeça e no coração. Está bem assim.

03/02/12
Luciano Trigo

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