"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

SÓCIO ARGENTINO ENFRENTOU PROBLEMAS EM SEU PAÍS

Dívidas milionárias por atrasos no pagamento de royalties, descumprimento do cronograma de obras e duas grandes renegociações do contrato de concessão marcam a história recente da Corporación América, o grupo que controla 33 aeroportos na Argentina e fará a primeira operação privada de um aeroporto federal no Brasil, após a vitória do consórcio Inframérica no leilão de São Gonçalo do Amarante.

Seu principal sócio, o argentino de origem armênia Eduardo Eurnekian, faz parte do seleto grupo de "empresários kirchneristas", que têm acesso à Casa Rosada e gozam de relativa proteção do governo, normalmente em troca de favores. Ernesto Gutierrez, um megaexecutivo escolhido por Eurnekian para presidir a Corporación América, frequenta com a mesma assiduidade as revistas de negócios e as de celebridades: sempre bronzeado, ele é jogador de polo e surfista, além de presença constante nas badaladíssimas festas do balneário de Punta del Este, onde o jet set argentino brinca de Saint Tropez durante as férias de verão.

Na última sexta-feira de julho, enquanto acompanhava a presidente Cristina Kirchner em almoço oferecido a ela no Palácio do Itamaraty, Eurnekian espalhou a autoridades de Brasília sua intenção de entrar com força no mercado brasileiro. Em menos de um mês, cumpriu com a sua palavra. O Brasil será o 7º país em que a Corporación América vai operar - ela já detém concessões na Argentina (35 terminais), no Equador (Guayaquil e Galápagos), no Uruguai (Montevidéu e Punta del Este), no Peru (cinco aeroportos do interior) na Armênia (Yerevan) e uma minúscula operação na Itália (Trapani).

Difícil afirmar se o grupo foi vítima da pior crise da Argentina ou aproveitou a situação para melhorar as condições do contrato

Em seu país de origem, a Corporación América controla a Aeropuertos Argentina 2000, que ganhou a licitação de 33 aeroportos concedidos em bloco, em 1998, na reta final da "era Menem". Diferentemente do novo aeroporto de Natal, em que venceu quem apresentou o maior valor de outorga, o critério era o maior pagamento de royalties anual. O grupo vencedor ficava com a concessão dos aeroportos por 30 anos e se comprometia em investir US$ 2,1 bilhões. O plano incluía um novo terminal em Ezeiza (que concentra 80% dos voos internacionais) e a desativação do Aeroparque (aeroporto central de Buenos Aires por onde passa cerca de 35% do fluxo doméstico).

Quatro anos depois, a Auditoría General de la Nación (órgão fiscalizador do Poder Executivo) denunciou pela primeira vez que a AA2000 descumpria suas obrigações contratuais e acumulava dívidas de US$ 104 milhões, pelo atraso no repasse dos royalties.

É difícil afirmar com exatidão se o grupo foi vítima da pior crise econômica da história argentina - obviamente é isso o que sustentam Eurnekian e Gutierrez - ou se aproveitou a situação para melhorar as condições do contrato como concessionária. De qualquer forma, há pouco mais de dois anos, a própria Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) chegou a uma conclusão quando divulgou estudo no qual analisava as experiências internacionais de transferências de aeroportos para a iniciativa privada. "A experiência argentina traz muitas lições para o Brasil sobre os riscos de um processo de privatização mal feito", diz o estudo da Anac.

De acordo com a AA2000, à medida que caía o número de afetados em função da crise e os investimentos eram preservados, não houve alternativa à inadimplência. Em 2003, segundo o governo argentino, o grupo comandado por Eurnekian já lhe devia US$ 350 milhões em royalties, que tinham duas funções: alimentar o orçamento do novo órgão regulador de aeroportos e subsidiar os poucos terminais que não foram privatizados.

Quatro dias antes de deixar a Casa Rosada, o ex-presidente Eduardo Duhalde (2002-2003) firmou um decreto que alterava o contrato de concessão, beneficiando a AA2000. Alvo de investigações no Congresso e de contestações na Justiça pela Aerolíneas Argentinas, então sob controle privado, a mudança foi suspensa pelos tribunais e Néstor Kirchner (2003-2007) recomeçou do zero as renegociações contratuais.

O encerramento da novela se deu, novamente, no fim de um governo. A uma semana de transmitir a faixa presidencial para sua esposa Cristina, Kirchner assinou o novo contrato de concessão com a AA2000, aprovado pelo Congresso. Em vez de royalties anuais, o grupo passou a pagar 15% das receitas aeroportuárias, o que significava uma queda das receitas para o governo no curto prazo. Com o aumento do fluxo de passageiros, no entanto, a tendência era aumentar a arrecadação. O plano de investimentos foi repactuado e Eurnekian se comprometeu em investir mais US$ 2 bilhões até o fim da concessão.

Investimentos como o novo terminal de Ezeiza, que havia sido deixado de lado, foram retomados. Com vários anos de atraso, o aeroporto internacional de Buenos Aires ganhou um novo terminal, inaugurado em julho deste ano. A dívida da AA2000 com o governo, estimada em US$ 108 milhões, foi paga com a emissão de títulos que podiam ser transformados em participação acionária, dando ao Estado a opção de tornar-se sócio novamente dos aeroportos, com até 20% do capital. O Ministério Público e vários parlamentares da oposição protestaram, contestando os valores renegociados.

No estudo que fez dois anos atrás, entre outros problemas na experiência argentina, a Anac citou dois: a firma vencedora subestima o custo e dá lances otimistas demais no leilão; depois, espera até renegociar o contrato de concessão quando for muito custoso para o governo substituí-la no contrato. Enquanto foi na Argentina, era apenas objeto de análise. A partir de ontem, passa a ser um assunto que interessa diretamente aos brasileiros.

23/08/2011
Daniel Rittner, de Brasília

Nenhum comentário:

Postar um comentário