"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 25 de junho de 2012

RELEITURAS

Retrato de uma "lenda viva" - Gervásio Baptista

Voando no banheiro
Oswaldo Aranha discursa durante enterro de Getúlio Vargas. Ao centro, João Goulart
Fazia muito frio no pequeno aeroporto de São Borja (RS). A comitiva do governo se preparava para embarcar depois do sepultamento de Getúlio Vargas no dia 26 de agosto de 1954. E Gervásio estava por ali. Havia fotografado o último adeus a Getúlio e queria voltar logo para o Rio de Janeiro.

Ao vê-lo batendo queixo, um militar sugeriu que enquanto as autoridades não chegassem, ele se acomodasse em um dos dois aviões C-46 da Força Aérea Brasileira estacionados no pátio. Com a máquina fotográfica na mão, Gervásio se escondeu no banheiro da aeronave e, de lá, ouviu o piloto dar a partida. Com cerca de 30 minutos de vôo, o coronel Caiado de Castro, então chefe da Casa Militar do governo, foi ao banheiro e se deparou com um homem sentado no chão.
- O que está fazendo aqui? - perguntou enfurecido o coronel.
- Estou viajando, como o senhor!- respondeu Gervásio.

Recebeu ordem de prisão na hora. Mas, enquanto o avião taxiava após desembarcar no Rio, Gervásio aproveitou a distração dos militares e pulou do C-46. Conta que saiu correndo no pátio do aeroporto do Galeão, pegou um táxi e se mandou para a redação da Revista Manchete. Lá, contou tudo para o dono da revista, Adolfo Bloch, e o convenceu a preparar uma edição extra com as imagens da viagem. A edição se esgotou.

Levanta o braço, presidente!
Juscelino Kubitschek, no dia da inauguração de Brasília
Passava das três horas da tarde daquele 21 de abril histórico. O ano era 1960. Dia da inauguração de Brasília. Gervásio Baptista, então repórter fotográfico da Revista Manchete, estava ali com a missão de fazer a foto que seria a capa da edição especial sobre a nova capital do país.

"Presidente, presidente!", gritou Gervásio, na subida da rampa do Palácio do Planalto, que tinha acabado de ser inaugurado por Juscelino Kubitschek e o vice, João Goulart. Assustado, JK parou, olhou para trás e perguntou o que Gervásio queria.
- Eu preciso que o senhor pose para a capa da Manchete.
- Aqui?
- É. Aqui na subida - confirmou Gervásio, pedindo que João Goulart se afastasse um pouco.
- Isso. Agora levanta a cartola, presidente.
Juscelino obedeceu. Em dois, três segundos, a Rolleiflex de Gervásio registrou aquela imagem que se tornaria uma das mais badaladas de JK. Afoito, Gervásio ordenou logo em seguida que o presidente abaixasse o braço rapidamente. Outros fotógrafos estavam ali por perto. E Gervásio não queria ninguém copiando sua idéia.

A última imagem de Tancredo vivo
Tancredo Neves e médicos, no Hospital de Base de Brasília
Gervásio não era apenas mais um dos vários fotógrafos que faziam plantão no Hospital de Base de Brasília naquela tarde de fim de março de 1985. Tancredo Neves, o presidente eleito que estava internado no sexto andar do hospital, tinha um carinho especial por ele. Tanto é que mandou chamá-lo.

Foi um susto para Gervásio quando um policial fez gestos discretos para que ele se afastasse do lugar onde estavam os demais fotógrafos, na entrada do hospital. O policial trazia o recado do presidente.
- O senhor está sendo solicitado lá em cima - avisou, sem dar detalhes.

Gervásio subiu. Encontrou um Tancredo sorridente, otimista com a recuperação. E que queria ser fotografado. Gervásio pensou nos colegas que estavam lá embaixo há horas e pediu que o presidente aparecesse na janela para que os outros também registrassem uma imagem dele. Tancredo não topou.
Ao lado dos médicos, sentado no sofá do quarto, posou apenas para Gervásio. É a única imagem que existe de Tancredo ainda vivo depois de ter baixado ao hospital.

Naquela ocasião, Tancredo já havia feito o convite para que Gervásio fosse seu fotógrafo oficial quando ele assumisse a presidência. No dia 21 de abril, Tancredo morreu de infecção generalizada no Instituto do Coração, em São Paulo. Havia sido operado sete vezes.

***

Pense num homem simples. Mas simples mesmo. De bem com a vida, sem frescura, sorridente. Daqueles que dá gosto só de estar ao lado. Gervásio Baptista é assim. Apesar dos 84 anos de idade, não aceita ser chamado de senhor.

Paciente como todo bom baiano, ele percorre o salão do Supremo Tribunal Federal (STF) onde está montada a sua primeira exposição em 50 anos de fotojornalismo. Para quem quiser ouvir, explica com detalhes e cheio de saudosismo cada uma das 45 imagens ali expostas.

Gervásio é uma lenda da fotografia. Registrou nada menos que sete Copas do Mundo, os bons tempos dos concursos de miss, a guerra do Vietnã, a revolução cubana, a derrubada do presidente argentino Juan Domingo Perón e os principais fatos políticos do século 20 no Brasil. De Getúlio Vargas para cá, não houve um presidente da República que não tenha sido fotografado por ele.
- Tô na história, né? - reconhece, gargalhando.

Mesmo assim, se dependesse de Gervásio, ele viveria no anonimato para sempre. Não faz a mínima questão de sair dizendo por aí que foi o fotógrafo oficial de João Goulart e José Sarney. Ou amigo íntimo de Tancredo Neves. Ou mesmo profissional de confiança de Assis Chateaubriand e da família Bloch – donos, respectivamente, dos Diários Associados e da Editora Bloch, que editou a Revista Manchete.

Gervásio não acumulou prêmios ao longo da carreira bem-sucedida, que começou na Bahia quando ele tinha 12 anos e conseguiu emprego de fotógrafo-assistente em um jornal dos Diários Associados. Também não fez fortuna. Vive modestamente. Não escreveu livros nem produziu documentários sobre tudo o que viu e fotografou. Preferiu apenas continuar trabalhando. Até hoje.

- Ele podia estar rico. Mas é tão simples que até me irrita - confessa a mulher, dona Ivonete, de 67 anos.
Paradoxalmente, ela reconhece que é justamente o jeitão "caxias" de Gervásio o combustível do amor entre os dois que já dura 40 anos. Não esconde, porém: queria mesmo é que o maridão mudasse de idéia e largasse o trabalho.
- Pra gente fazer coisinhas de velho mesmo, sabe? Viajar para o exterior, jogar baralho, essas coisas. Mas não vai ser possível. Se ele parar, não acredito que dure muito - desabafa, com muita sinceridade.

"Firme como o Pão de Açúcar" (a expressão é dele), Gervásio está no batente de segunda à sexta-feira. Pela manhã trabalha na Radiobrás. À tarde, no STF. De fato, dona Ivonete terá de se contentar com o marido que tem. Um dos fotógrafos mais antigos ainda em atividade no Brasil dá sinais de que não pretende parar tão cedo.
- Não posso. Ainda não fiz minha grande foto – justifica-se ele.

Enviado por Diego Amorim26.3.2008
in Ricardo Noblat

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