"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

GRUTTER E BAKKE


Em minha crônica de ontem sobre a escalada do apartheid, retomei dados de 2001. Nada melhor que um leitor atento. Bruno Bolson Lauda me atualiza:

Janer,

o caso Grutter é de 2003, na Suprema Corte americana. Foi decidido em favor da manutenção da política de levar a raça em consideração na admissão. Não foi decidido de forma unânime. Quatro juízes votaram contra. Um deles, o único negro da Corte, Justice Clarence Thomas, votou contra. E bem contra, diga-se.

O caso a que você realmente se refere é Regents of University of California v. Bakke, de 1978. Neste caso, a USSC (United States Supreme Court) decidiu contra a constitucionalidade da política de cotas, isto é, de reserva de vagas para pessoas de uma determinada raça.

A diferença entre os dois é a seguinte (estou sendo breve e falando en passant de propósito): em Bakke, foi decidido que a política de cotas é inconstitucional, por ferir a Equal Protection Clause, isto é, a 14th Amendment, que estabelece a igualdade de proteção perante a lei nos EUA para todos os cidadãos americanos. No entanto, em Grutter, foi decidido que raça pode ser levada em consideração para determinar se alguém vai ou não ser admitido na universidade; só não pode ser o único fator.

No Direito americano, você deve saber, os juízes fazem lei. O sistema do common law é assim. Nele, os precedentes têm valor de lei. Especialmente quando se trata de um precedente da USSC. No entanto, às vezes não é possível aplicar um precedente "friamente", isto é, de maneira direta, devendo o juiz interpretar o caso presente e verificar se os fatos e as razões que levaram à decisão no precedente se repetem no caso presente.

O judge Bernard, nesse caso que você citou - ele é um juiz federal de primeiro nível - tentou fazer precisamente isso: ele partiu do precedente Bakke para decidir o caso que tinha em mãos, Grutter. Ocorreu, porém, que a USSC decidiu, depois, em recurso, que não há identidade entre os dois casos, podendo e devendo Grutter ser decidido de forma diferente. Por quê? Porque em Grutter o caso não era de uma política de reserva de cotas na universidade (que havia sido declarada inconstitucional), mas sim de uma política de admissão que levava em consideração a raça do candidato entre outros fatores em uma escola profissional (faculdade de Direito).

Estão, aos poucos, trazendo o Common Law para o Brasil. No entanto, a maioria dos profissionais do Direito brasileiros não sabem nada sobre o Common Law além do que leram em manuais e livros...escritos por brasileiros!

Aí, o raciocínio sofisticado e o trabalho de interpretação que fazem os tribunais americanos passam completamente despercebidos. Fica-se com a impressão de que o juiz pode decidir de forma arbitrária. Saímos de uma adaptação do sistema francês bouche de la loi para um anarquismo jurídico, em que juízes podem declarar leis inconstitucionais sem levar em consideração absolutamente nada, nem a lei e nem a opinião da Suprema Corte.


17 de outubro de 2012
janer cristaldo

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