"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

INTELLIGENTZIA OU "BURRITZIA"?

    
          Artigos - Cultura 
Um argumentum ad hominem, mesmo não tendo fundamentos lógicos, quando bem manipulado pode se transformar em perigosa arma de retórica.

Rendeu-me panos para mangas aquela postagem de Helio Beltrão ontem no Facebook, em que ele mostrou mais uma vez a precisão e acuidade que lhe são peculiares, arrematadas por uma pergunta inteligente e da mais fina ironia:
"Esse Willian Vieira, da Carta Capital, afirma que os "livremercadistas desejam a privatização geral da existência". Por acaso esses estatistas acham que nossa existência deveria ser estatal também"?
E dispara novamente seu bom humor em tom de palavras de ordem: "Pela Privatização Geral da Existência"! Boa, Helio, aperta aqui!

As mangas a que me referi não são verdes, mas vermelhas; não são doces, mas amargas; não são de época, mas serôdias; e não são frescas, mas apodrecidas. Refiro-me à chamada intelligentzia, da qual a revista Carta Capital é um típico excerto, um fragmento bem característico.
 
Isaiah Berlin (1909-1997), grande cientista-político, filósofo e historiador judeu nascido em Riga, na Letônia, cuja família emigrou para a Grã Bretanha quando ele tinha cerca de dez anos, foi um dos principais pensadores liberais do século passado.
Berlin definia intelligentzia como um certo grupo de pensadores que se opõem diretamente a regimes opressivos e que se unem na luta contra esse regime e na promoção do racionalismo crítico, do progresso social, da valorização do intelecto e da defesa dos valores da liberdade individual e da verdade.
 
Sua obra mais conhecida é a fantástica Four Essays on Liberty, em que desenvolve duas concepções de liberdade: liberdade negativa, definida como ausência de coerção às ações individuais e liberdade positiva, caracterizada pela presença de comandos ou coerções, que os engenheiros sociais do Estado e sua sequela de súcubos imaginam servir para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos, mas que na verdade sempre impedem que isso aconteça. A primeira é liberdade de e a segunda liberdade para.
 
A intelligentzia (ou intelligentsia), portanto, nada mais é do que um conjunto de indivíduos que desenvolvem trabalhos intelectuais tendo em vista a evolução do ambiente cultural seguindo a sua visão de mundo. A origem desse termo é latina [intelligentia, inteligentiae] e em sua concepção original nada havia que lembrasse o uso distorcido que os grupos autoritários passaram a fazer dele.
 
Com a forte disseminação da influência nefanda de Gramsci - o grande inspirador do pior tipo de intelligentzia - em todo o mundo, o termo passou a designar grupos de intelectuais de esquerda, desses ditos engajados, que assinam manifestos, participam de passeatas, têm cadeiras cativas em universidades, jornais e revistas e são incensados, endeusados e cultuados pela mídia também comprometida até o último fio de cabelo com a ideologia marxista.
 
A revista Carta Capital é um exemplo bem característico desse conceito distorcido de intelligentzia, que meu querido amigo, o embaixador José Oswaldo de Meira Penna, do alto de sua sabedoria de noventa e cinco anos de vida, de incontáveis horas de estudos e de muitas viagens ao redor do mundo, sempre corajoso, cáustico e exsudando o delicioso perfume da cultura e do bom humor em tudo o que faz, denominou certa vez de burritzia. Claro, podemos também chamar de estultitzia...
 
Recomendo também a todos a leitura do espetacular livro Os intelectuais, de Paul Johnson, em que ele desmistifica e desmascara esses membros da chamada intelligentzia alimentados a pão de ló pela mídia e sempre com amplos espaços nos cadernos ditos "culturais" dos jornais.
 
Uma característica que salta aos olhos quando ouvimos ou lemos esses pseudo-intelectuais é o uso abusivo de ataques pessoais, que a boa lógica denomina de argumentum ad hominem, em que se ataca a pessoa que apresentou o argumento e não o argumento em si. Nesse tipo de falácia os argumentos são postos de lado e ataca-se o caráter, o sexo, a visão de mundo, a nacionalidade, a raça ou a religião da pessoa de quem se está falando ou com quem se está debatendo.

Pode também se dar por uma sugestão de que a outra pessoa, por defender algum argumento, faz isso sempre movida pelo interesse, ou que ela tem seu nome associado a empresas, grupos ou associações. Um argumentum ad hominem, mesmo não tendo fundamentos lógicos, quando bem manipulado pode se transformar em perigosa arma de retórica.
 
Trata-se, evidentemente, de uma falácia, pois conclui sobre o valor da proposição sem examinar seu conteúdo, o que é absurdo. O argumentum ad hominem é um logro que tenta mostrar a irrelevância do que o lado oposto afirma, já que ataca uma proposição utilizando-se apenas da introdução de um elemento não relevante, que não passa de um juízo sobre o autor da proposição ou sobre uma terceira pessoa. Usa a armadilha de desviar o âmago da discussão para um fato ou componente externo, a saber, os ataques pessoais ao outro debatedor.
 
Porém, mesmo sendo falacioso, possui uma estrutura lógica: o oponente Z formula a alternativa A; o falacioso encontra algo de negativo em Z; portanto, a alternativa sugerida por Z é falsa. Argumentos ad hominem funcionam através do efeito halo, um viés cognitivo em que a percepção de um certo traço característico é influenciado pela percepção de uma característica relacionada a esse fato: por exemplo, considerar louras mais inteligentes do que morenas e sugerir com a maior cara de pau que, portanto, Mirella, que é loura, é mais inteligente que Concetta, que é morena.

Isso ocorre porque as pessoas têm a tendência de julgar as demais como sendo ou inteiramente boas ou inteiramente más, muito inteligentes ou um poço de estultice. Vejam a maldade da “coisa”: se João conseguir atribuir uma característica reprovável para seu adversário Luís, os outros tenderão a duvidar dos argumentos de Luís, mesmo que sua característica reprovável seja absolutamente irrelevante para a discussão, por exemplo, se Luís for careca.
 
Meu amigo Olavo de Carvalho, uma das pessoas mais inteligentes que conheço, mostrou que a falácia ad hominem não tem só apelo retórico, mas também certo valor lógico e exemplifica isso com a proposição de Marx de que só o proletariado teria uma visão objetiva da história.
Ora, tomando isso ao pé da letra, então um argumento ad hominem efetivamente torna a visão marxista absolutamente incoerente, pois, se Marx nunca foi um proletário, sua própria visão da história não poderia jamais ser objetiva...
 
Existem vários tipos de falácias ad hominem, ligeiramente diferentes entre si, dos quais podemos destacar quatro:
 
(a) abusiva. É um dos estratagemas falaciosos mais comuns da intelligentzia e consiste em, ao invés de rebater um argumento ou uma afirmativa, atacar-se a pessoa que o apresentou. Exemplo: "você é um admirador do ministro Joaquim Barbosa apenas porque isso agora virou moda".
 
(b) tu quoque (apelo à hipocrisia). Neste caso, ataca-se o contendor afirmando que ele não pratica o que diz. Geralmente o falacioso insinua algo do tipo "faça o que eu digo, mas não o que eu faço". Exemplo: "Os professores Iorio, Mueller e Barbieri vivem a criticar o Estado, mas são docentes de universidades públicas; que hipócritas!" (eles adoram essa palavra).
 
(c) circunstancial. Ao invés de rebater um argumento, atacam-se as circunstâncias em que o opositor o fez, ou as suas circunstâncias pessoais. Exemplo: "Não podemos levar a sério as declarações de Pafúncio, porque ele é patrocinado pelos grandes empresários" ou "É claro que você é contra o salário mínimo, porque é rico".
 
(d) culpado por associação. Agora a crítica não é dirigida diretamente ao adversário, mas a uma terceira pessoa de imagem negativa, que é então relacionada ao adversário. Por exemplo: "Você defende ideias que Maluf também defende; logo, o que você defende está errado".
 
Convido você agora a pensar, à luz do que escrevi sobre as falácias ad hominem, nos argumentos que nossa intelligentzia esquerdista apresenta em seus ataques contra os defensores da economia de mercado. Não parece que você está vendo, neste exato momento, esses estatistas falando na TV, entrevistados geralmente por jornalistas que também cometem os mesmos erros das mentiras ad hominem? Ou que você está lendo a matéria principal do caderno cultural de um grande jornal? Ou na plateia de um debate no auditório de uma universidade?
 
Rebater e desmoralizar qualquer tipo de falácia ad hominem é simples, embora exija rapidez de raciocínio: basta mostrar, sempre com base em argumentos lógicos, que o caráter do outro debatedor não tem qualquer relação com a afirmativa que ele defende.
Por exemplo, chamar alguém de corrupto, tucano, petista, keynesiano, nazista, comunista, gay, machista, ateu, ladrão, pedófilo, homofóbico, “mensaleiro”, direitista, etc. não prova que todas as suas ideias estejam erradas.
E também provar para o contendor falacioso que o caráter, as práticas e as circunstâncias estão para a verdade ou falsidade da sua proposição assim como um acorde de mi bemol com sétima e nona está para a teoria monetária da Escola Austríaca. Ou seja, que o primeiro nada tem a ver com a segunda.
 
Essa matéria da Carta é um verdadeiro amontoado de falácias, como a de que os defensores do livre mercado desejam a privatização de sua existência. Prova incontestável da burritzia da intelligentzia.

10 de dezembro de 2012
Ubiratan Iorio

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