"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

EU, VAGABUNDO


Viajava pelo Ártico, preocupado com auroras boreais, quando li uma crítica anônima, me definindo como vagabundo profissional. Como em uma viagem dessas o que menos se pensa é em responder a anônimos, deixei passar. Além do mais, acho que anônimos não merecem resposta. Mas a acusação do leitor é interessante e me estimula a uma definição.

- Sim, vagabundo profissional, já escreveu diversos textos "denunciando" a "corrupção" das bolsas para pesquisadores no exterior, mas se esquece de dizer que ele próprio foi um beneficiado dessa mesma corrupção, que passou férias em Paris enquanto escrevia centenas de páginas de abobrinhas inúteis que nunca ninguém irá ler”.

Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar de si mesmo, escreveu Dostoievski, em Notas do Subterrâneo. Essas ocasiões não surgem toda a hora e não vou desperdiçá-la.

Sim, denunciei a corrupção das bolsas para pesquisadores brasileiros no Exterior. A universidade é um universo permeado pela corrupção, uma corrupção perfeitamente legal, mas nem por isso menos corrupção. Estudar a obra de Guimarães Rosa em Berlim ou a de Nelson Rodrigues em Paris evidentemente não é crime. Mas cá entre nós: será preciso despender dezenas de milhares de dólares, durante quatro ou cinco anos, para financiar o estudo da obra de autores brasileiros na Europa? Os acadêmicos europeus têm procedimento diverso. Quando se trata de estudar literatura brasileira, vêm ao Brasil.

Mas atenção: falei de pesquisadores brasileiros no Exterior, financiados pelo CNPq e Capes. Como pesquisador, fiz meus estudos no Exterior, mas jamais recebi um único vintém de instituições brasileiras. Recebi bolsas e viagens de instituições estrangeiras, da Alemanha, Espanha, França e Tunísia. Jamais recebi um tostão do Brasil.

Nem pedi. Se pedisse não ia receber mesmo. Nunca tive pistolão junto à Capes ou CNPq. Diga-se de passagem, quando professores franceses que jamais me viram ou ouviram falar de mim – a não ser por meu currículo – decidiram dar-me uma bolsa, os participantes brasileiros da comissão franco-brasileira que julgava os candidatos a negaram. Como insisti uma segunda vez, os franceses ganharam a parada.

Nunca tive férias naqueles dias de Paris. Em Paris, trabalhei duro durante quatro anos. Minhas férias, eu as passava nas ilhas gregas, canárias, ou no Brasil. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo.

De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Mais importante que a tese foi colocar a cultura francesa – e européia – junto ao café da manhã de meus leitores no Rio Grande do Sul. Todo santo dia. Nesse mesmo período, traduzi boa parte da obra de Ernesto Sábato, um dos autores que estudei em minha tese.

Vagabundo profissional? De certa forma sim. Boa parte de minha vida trabalhei em casa e, uma vez cumprido meu trabalho, dispunha de meu tempo como bem entendesse. Nos dias de Porto Alegre, fui escolhido para substituir Luis Fernando Verissimo na Folha da Manhã por minha vida boêmia. “Contrata o Janer como cronista, ele vive nos bares”, disse P. F. Gastal ao Valter Galvani, então editor do jornal.

Eu tinha os cursos de Filosofia e Direito. Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo, como dizia Sábato. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias – com h minúsculo mesmo – que vamos encontrar... na literatura.

O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.

Foi o Gerd Bornheim o responsável pela distância que tomei da filosofia. “O objeto da Filosofia, hoje – disse o Gerd – é buscar o objeto da Filosofia”. Que continuassem buscando. Quando o encontrassem, favor avisar-me.

Exercer advocacia, tampouco me interessava. Advogado tem de usar terno e gravata e chamar juiz de meritíssimo, duas coisas que jamais me agradaram. Além disso, prende o profissional a um escritório. Me dei conta disso após uma viagem que fiz às ilhas gregas com uma advogada gaúcha. Viajamos mais ou menos durante um mês. Na volta, seu sócio havia roubado todos seus clientes. Teve de recomeçar de zero.

Vagabundo? Melhor diria aventureiro profissional. Nunca me preocupei em fazer carreira. Pulei de profissão em profissão, conforme o sabor dos ventos. Na primeira ocasião que tive de trabalhar em jornal – em 69, não se exigia diploma de jornalista para o exercício do ofício – fui correndo para uma redação. O salário era baixo, mas pelo menos trabalhava em algo que não me machucava. E me permitiria – pensei então – viajar.

Permitiu. Nos dias de Paris, continuei assinando crônica diária na Folha da Manhã. Com uma vantagem: podia escrever de onde quer que estivesse. Assim, escrevi não só de Paris, como de Berlim, Cannes, Tunis e ilhas gregas. Falida a empresa, passei a trabalhar como professor universitário na UFSC, em Santa Catarina. Devo confessar que nem sabia, ao freqüentar o curso da Sorbonne Nouvelle, que doutorado servia para lecionar. Fui saber após ter defendido a tese.

Ejetado da universidade após quatro anos de magistério, voltei ao jornalismo, trabalhando no Estadão e Folha de São Paulo. Os períodos de desemprego, aproveitei-os em viagens. É uma bela ocasião para viajar. Em outros períodos de vacas magras, dediquei-me a traduções.

Até os quarenta, trabalhar para mim foi lazer. Nunca senti que trabalhava. Acho que só abandonei a adolescência em 1987. Estava em Madri e meus colegas de curso comemoravam meu aniversário. Naquele dia eu virava quarentão, estava desempregado e não via luz ao final do túnel. Voltei. Foi quando fui chamado para trabalhar na Folha de São Paulo. Os deuses do Acaso ainda me queriam bem.

Nunca pretendi fazer carreira. Quando denunciei as falcatruas da UFSC na imprensa catarinense, houve quem pensasse que estava me candidatando a reitor. Ora, é a última coisa que pensaria na vida. Longe de mim a idéia de gerir um ninho de cascavéis. A rigor, nem me interessa a idéia de ser chefe de departamento. Reuniões de departamento, a meu ver, é a parte mais sórdida da universidade. São aquelarres em que velhas bruxas se divertem amarrotando egos alheios. Jamais pensei em ser editor em jornal. Queria apenas fazer meu trabalho. Ocorre que, em um clima de UP OR OUT, não vai longe quem não quer ser chefe.

Fiz minhas incursões pela literatura. Traduzi cerca de vinte livros, do sueco, espanhol e francês. Publiquei duas ficções, um livro de contos e mais uns quinze de crônicas e ensaios. Mas literatura no Brasil só é permissível a amigos do Rei ou escritores políticamente corretos. Os leitores devem lembrar dos anos 70, 80, quando todo escritor era um crítico implacável do governo. Pois bem. Estamos já em um outro século, em época em que a corrupção do governo atingiu níveis jamais vistos na história do país. O leitor consegue divisar algum romancista, contista ou poeta criticando hoje o governo? Eu não vejo nenhum.

Sem falar que abandonei a ficção, até como leitura. Histórias inventadas já não me seduzem. Verdade que sempre posso reler um Cervantes ou Swift, um Koestler ou Orwell. Mas hoje prefiro fatos. Tenho lido história nos últimos anos.

Apesar de hoje viver tranquilo, jamais pensei em dinheiro nem futuro. Isso de matar-se trabalhando para juntar posses nunca esteve em minha mente. Trabalho intenso? Tudo bem. Mas quero então lazer intenso. Faço minhas as palavras de Don Giovanni:

- Giacché spendo il miei danari, io mi voglio divertir.

Vagabundo? Pode ser. Depende do conceito que se dá a esta palavra. Se for o de nada ter feito na vida, em mim ela não cabe. Se for o de ter bem gozado meus dias, sou vagabundo com muito prazer.


09 de janeiro de 2013
janer cristaldo

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