"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

P ARTIDO T ORPE "NU PUDÊ": ESCÁRNIO E ERA DE DEBOCHE


Mais uma vez as chuvas do verão destroem, desalo­jam e matam, de modo tão previsível quanto as bandalheiras orçamentárias, mas o go­verno federal só gastou no ano passa­do cerca de um terço - 32,2% - das ver­bas previstas para prevenção, enfrentamento de desastres e reconstrução.
O Tesouro pagou R$ 1,85 bilhão dos R$ 5,75 bilhões autorizados, segundo nú­meros oficiais tabulados pela respeita­da organização Contas Abertas.
Nada espantoso, nada anormal.
 
A normalida­de inclui, segundo altos funcionários da Fazenda, malabarismos contábeis para a encenação do cumprimento da meta fiscal. Foi tudo legal, tudo certinho, segundo o secretário do Tesouro, Amo Augustin. Não seria mais fácil, mais claro e mais decente reconhecer o mau resultado e tentar, se fosse o ca­so, justificá-lo?
 
Em outros tempos, com certeza.
 
Na era do deboche, é igual­mente normal deixar a aprovação do Or­çamento para depois, porque o Executivo daráum jeito de garantir as despesas, den­tro ou fora dos padrões constitucionais.
Neste tempo bandalho, o poder públi­co tem prioridades muito mais interes­santes que administrar a vida coletiva e servir aos interesses da sociedade. É preci­so aproveitar o tempo e o dinheiro dos contribuintes para financiar empresas se­lecionadas, proteger setores amigos, ofe­recer contratos a grupos felizardos e pôr as estatais a serviço de projetos políticos pessoais e partidários. Também natural - como consequência - foi a deterioração da Petrobrás, depois de anos de submis­são a decisões centralizadas no Palácio do Planalto.
Com persistência, a nova presi­dente, Graça Foster, talvez consiga arru­mar a empresa, se ficar no posto por tem­po suficiente. Tem mostrado disposição para o trabalho sério, mas sua figura con­trasta, perigosamente, com a maior parte do cenário.
Na era do deboche, os padrões políti­cos e gerenciais se degradam em quase todos os cantos e todos os níveis do siste­ma de poder. Um bonde sai dos trilhos, por falta de manutenção, e passageiros morrem. A primeira reação das autorida­des é lançar suspeitas sobre o motomeiro, também morto no acidente. Uma criança baleada fica oito horas sem aten­dimento, embora levada a um hospital. Resposta oficial:
o médico faltou.
Faltou, sim, mas essa é a resposta errada.
Pode ter sido irresponsável, mas também poderia ter sido atropelado ou atingido por um raio. Em qualquer cidade gerida com um mínimo de competência e seriedade, os serviços públicos essenciais funcio­nam como um sistema. Não havia outros médicos disponíveis? Não se podia mobi­lizar uma ambulância para levar a vítima a um lugar onde recebesse assistência? Na segunda maior cidade de uma das dez maiores economias do mundo, a falta de um único funcionário pode comprome­ter o socorro de emergência a uma pes­soa ferida ou doente.
Mas o padrão se repete.
Na capital fede­ral, crianças ficaram sem atendimento porque plantonistas faltaram para pres­tar exames de residentes. Nenhum admi­nistrador sabia? Afinal, quem aplicou o exame? Novamente: que porcaria de sis­tema administrativo deixa a segurança dos pacientes na dependência de jovens profissionais?
Sistemas organizados pa­ra funcionar de verdade têm mecanis­mos de segurança. São impessoais. Ne­nhum dirigente de nível superior tem o direito de renegar apropria responsabili­dade para transferi-la aos subordinados na ponta da linha.
Na era bandalha, quem se importa com a escala das responsabilidades e com a qualidade gerencial do setor público? O governo brasileiro comprometeu-se em 2007 a hospedar a Copa do Mundo de 2014. Em 2011, quando o novo governo se instalou, nada, ou quase nada, havia sido feito para preparar o País. Havia atraso nas obras de aeroportos, estádios, estra­das e sistemas urbanos de transporte. Os atrasos continuam, mas os custos subi­ram, muito dinheiro foi desperdiçado e mais ainda será perdido.
Nesta fase debochada, os apagões se multiplicam e chegam a atingir vários Estados, às vezes por várias horas. Os altos funcionários do sistema falam em raios, depois em falhas humanas. A chefe de todos recomenda aos jornalis­tas uma gargalhada, se alguém mencio­nar novamente a queda de um raio. Mas quem tem autoridade para pôr or­dem na casa e cobrar seriedade na ges­tão do sistema?
Em tempos bandalhos, o presiden­te da Câmara dos Deputados promete asilo a condenados num processo pe­nal - criminosos, portanto se a Justi­ça ordenar sua prisão. Qual o próximo passo: votar a revogação das penas? Combinaria bem com os padrões atuais de normalidade.
Quando o Con­gresso adia a votação do Orçamento, crianças ficam sem assistência médi­ca porque o serviço hospitalar é um desastre, a economia emperra porque a infraestrutura se esboroa e a diplo­macia, outrora competente e respeita­da, se torna subserviente à senhora Cristina Kirchner, a piada final é atri­buir os males do País ao câmbio valori­zado e aos juros.
Abaixo o real, e tudo será resolvido.
 
Rolf Kuntz O Estado de S. Paulo
09 de janeiro de 2013

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