"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 20 de março de 2013

REEDUCAÇÃO DO IMAGINÁRIO: PRIMEIRAS IMPRESSÕES E RESULTADOS

       
          Artigos - Cultura 
O projeto é diretamente inspirado nas lições do filósofo Olavo de Carvalho, expostas em magistrais aulas dos primeiros anos do Curso Online de Filosofia.

Em fevereiro de 2013 foram realizadas as primeiras entrevistas de avaliação dos presos participantes do primeiro módulo do “Projeto Reeducação do Imaginário”, diretamente no presídio de Joaçaba/SC.

Conforme já divulgado, o projeto, implementado na Vara Criminal da Comarca de Joaçaba, visa a reeducação do imaginário dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido na vida, os valores morais e religiosos tradicionais e a redenção pelo arrependimento sincero e pela melhora progressiva da personalidade, que a educação pela leitura dos clássicos auxilia.

É sempre conveniente mencionar que todos os presos participantes do projeto também trabalham em atividades internas ou, excepcionalmente externas sob fiscalização, portanto não se trata, a leitura como forma de diminuição de pena, de ocupação em tempo integral.
Ao contrário, os apenados voluntariamente reservam horas de seu descanso para a leitura, pois exercem uma série de funções no presídio, como trabalhos na cozinha, limpeza, artesanato, fabricação de sapatos em parcerias com empresas locais fiscalizadas pelo Juízo etc.
Um dos objetivos indiretos do projeto é exatamente ocupar o tempo livre com alta cultura, após o trabalho, tempo este que talvez fosse dedicado a futilidades ou mesmo ao planejamento de novos crimes. Segundo os relatórios e prestações de contas do Conselho da Comunidade local, que participa ativamente da gestão do presídio e que apóia o projeto, os valores obtidos pelos presos com seu trabalho são usados em parte no próprio sustento interno (aquisição de comida e objetos de higiene pessoal) e em parte são remetidos aos seus familiares.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=cVxmo_DMWDY

Ainda, é importante registrar que os livros usados no projeto não custam um centavo ao contribuinte. Quem paga são pessoas que cometem pequenos delitos, desde que sem antecedentes criminais. Autores de delitos como lesões culposas, ameaças sem consequências outras, delitos de trânsito, como condição para evitarem a deflagração de uma ação penal, pelo instituto legal da transação penal. Adquirem as obras em edições de bolso e as entregam no prazo estipulado, acompanhadas da nota fiscal. Após, os livros são remetidos ao presídio. Ou seja, os autores de pequenos delitos ajudam arcando com as despesas da educação dos que cometeram delitos mais graves.

As entrevistas com os presos, todas gravadas em áudio, foram conduzidas pelo juiz de Direito Márcio Umberto Bragaglia e pelos assessores jurídicos Grasiele Juliana Christ e Augusto Cesar Becker. Os detentos (todos voluntários) tinham a prazerosa missão de ler 'Crime e Castigo', de Dostoiévski, obra escolhida por seus evidentes efeitos “terapêuticos” no campo da tomada de consciência profunda e do arrependimento sincero.
O projeto é diretamente inspirado nas lições do filósofo Olavo de Carvalho, expostas em magistrais aulas dos primeiros anos do Curso Online de Filosofia. Ensinou o professor Olavo que para o exercício de qualquer atividade intelectual séria, e mesmo para a orientação pessoal e prática do indivíduo no curso de sua vida, é imprescindível um prévio trabalho de fortalecimento do próprio caráter, e que a grande literatura é um instrumento poderoso neste sentido porque permite que a experiência humana do real, conforme percebida e registrada pela voz dos mais talentosos e sinceros autores, seja absorvida e refletida ao máximo.

Inspirados na idéia de educação do imaginário pessoal, resolvemos adaptá-la ao nosso universo de trabalho, qual seja a Execução Penal na Vara Criminal de Joaçaba SC, em especial no Presídio Regional que atende também diversos municípios vizinhos, e desenvolvemos o projeto Reeducação do Imaginário (Portaria n. 1/12/GJ), que concede remição (diminuição) de dias de pena pela leitura, com aproveitamento, de obras clássicas da literatura, selecionadas a partir principalmente das seguintes fontes: a 'História da Literatura Ocidental', de Otto Maria Carpeaux, 'Como ler livros', de Mortimer J. Adler e Charles Van Doren e 'O Cânone Ocidental', de Harold Bloom, além das diversas indicações em aulas, artigos e obras publicadas pelo próprio professor Olavo de Carvalho.

Já foram publicados quatro editais referentes às obras já escolhidas e adquiridas para leitura dos detentos. Os primeiros livros, pela ordem, são: 'Crime e Castigo' de Dostoievski, 'O Coração das Trevas' de Konrad, 'Othello' de Shakespeare e 'Moby-Dick' de Melville.

Registramos que a Corregedoria-Geral de Justiça de Santa Catarina, após ter sido noticiada da existência do projeto e após analisá-lo, recomendou sua divulgação como “boa-prática” do Poder Judiciário Catarinense, conforme decisão proferida nos autos. n. 0013295-90.2012.8.24.066.

A equipe do Gabinete da Vara Criminal se dirigiu até o ergástulo com esperança nas idéias do projeto mas, ao mesmo tempo, sem muita certeza do que lá ouviria dos apenados, se eles realmente haviam se dedicado, se haviam trocado idéias sobre o livro, se haviam captado de alguma forma importante a mensagem da obra.
E mais, se a obra havia tido tempo de, nos apenados, causar algum efeito catártico. Prorrogou-se o período de leitura de 30 para 60 dias, no intuito de deixar 'Crime e Castigo' agir no íntimo de cada leitor, “para que o livro exerça a profundidade do seu impacto”, conforme recomendou o professor Olavo de Carvalho.

Pois bem. Já na primeira conversa com o primeiro leitor veio a grata surpresa: relato contundente do complexo enredo, com detalhes, elementos chave bem captados e, pasmem, em uma folha de caderno, uma errata, uma lista de erros encontrados pelo preso leitor no livro - erros ortográficos ou frases que, pela tradução, ficavam sem sentido. Na verdade, os dois primeiros entrevistados, companheiros de cela, apresentaram a “revisão ortográfica”, anotaram as dúvidas (geralmente palavras que não encontravam no dicionário que sempre acompanha a entrega de cada livro, por exemplo nomes próprios), o que nos deixou muito satisfeitos já de plano, pois restou claro que houve dedicação e mesmo debate interno sobre a história de Raskólnikov. Incentivar a conversa sobre a obra foi também um objetivo indireto alcançado.

Na seqüência das entrevistas (foram 16 homens e 7 mulheres) na primeira rodada, nossas esperanças foram florescendo ainda mais, pois sentíamos que os detentos realmente se interessaram por 'Crime e Castigo' e o leram, alguns duas vezes, porque respondiam às perguntas da equipe com conhecimento de causa, ainda que com dificuldade algumas vezes, em especial pelos nomes russos.
Alguns, ainda, demonstravam grande entusiasmo com tudo aquilo, como um senhor já idoso, condenado por tráfico de entorpecentes e que cumpre pena há um bom tempo, que chegava a se levantar da cadeira para nos contar sobre os motivos que levaram “Ródia” a cometer o crime, sobre seu “coração bom no final das contas”, sobre as razões da prostituição de Sônia etc. Isso se repetiu em relação à vários detentos, merecendo destaque o grau de identificação pessoal de alguns deles (nos vem à mente o relato de uma presa em especial) que às vezes chegava ao ponto das lágrimas quando se aprofundava a discussão sobre arrependimento real e possibilidade de perdão, inclusive com menções expressas ao crime por ela cometido.

Somente três dos dezesseis homens entrevistados na primeira sessão apresentaram sinais evidentes de capacidade intelectual reduzida ou de capacidade de expressão precária. Um nos apresentou resumo escrito, pois estava nervoso e não conseguia lembrar de detalhes específicos do livro por problemas de memória, o que pareceu verdadeiro, pois lhe foram feitas perguntas sobre alguns detalhes periféricos, e ele conseguiu se recordar, demonstrando que efetivamente houve leitura, sendo as dificuldades mais de relato do que de apreensão. O que começou com a tentativa de entrega de um relato escrito acabou gerando uma entrevista delicada mas proveitosa.

Outros dois tinham sérios problemas na comunicação propriamente dita, e não conseguiam se expressar com o grau esperado de qualidade, mas também foram aprovados por conseguirem expor a problemática da obra nos seus pontos estritamente essenciais, e isso sob advertência de que na etapa seguinte o rigor da avaliação seria redobrado e com o compromisso de se esforçarem para repassar melhor a informação do próximo livro, que é inclusive bem mais curto, embora também bastante denso em termos substanciais (afinal o Coração das Trevas de Joseph Conrad não lida com os efeitos do meio maléfico numa alma talvez nobre?). Isso porque o objetivo do Projeto não é cobrar memorização por parte dos apenados, mas sim compreensão do conteúdo, dos símbolos, na busca por algum efeito no campo da tomada de consciência.

Com as mulheres, da mesma forma, a experiência foi interessante. Todas, sem exceção, apresentaram relatos sólidos da obra, com opiniões pessoais e dando a clara sensação de que haviam feito um debate em conjunto sobre a história. Inclusive, algumas apenadas confidenciaram que ao final do dia todas se reuniam e faziam um pequeno grupo de estudo e de leitura conjunta, além de que enquanto trabalhavam na cozinha (quase todas as participantes têm este serviço dentro do presídio) discutiam o livro. Vejam só: detentas debatendo Dostoiévski na cozinha do ergástulo público. Com certeza estão lendo melhor que a expressiva maioria dos universitários brasileiros!

Outro ponto que chama a atenção é como os participantes utilizam, ainda que inconscientemente, experiências de suas próprias vidas para integrar ou interpretar o texto. Houve relatos no sentido de que Raskólnikov era um rapaz muito pobre vindo do interior, mas que passou a beber em demasia, o que teria sido a origem de seus problemas. Sabe-se que o personagem principal não era dado ao vício da embriaguez, mas apenas que freqüentava as tabernas, motivo pelo qual alguns dos leitores já fizeram a ligação com o álcool e suas consequências às vezes devastadoras, experiências que muitos vivenciaram na pele, seja com os pais e parentes ou consigo mesmos. Outros registravam em tom bastante pessoal as experiências com pobreza, tentação para a prática de crimes, arrependimento. Questionamos a certo preso o seguinte: “Raskólnikov praticou um crime praticamente perfeito, não foi visto por ninguém e provavelmente sairia impune. O que houve? Como acabou preso?” A resposta: “não há crime perfeito doutor. A consciência também fala...”

O tópico presença e intervenção de Deus, que é muito óbvio e marcante na história, seja pelos símbolos ou mesmo pelas passagens mais explícitas (a divisão da pena entre Sônia e Raskólnikov, simbolizada pelas posses simultâneas de dois crucifixos, duas cruzes para juntos carregarem; à alusão à intermediação da Santíssima Virgem durante a primeira confissão do protagonista, ajoelhado, aos pés de Sônia etc) foi percebida por praticamente todos os apenados, que demonstraram acreditar na possibilidade de salvação por Sua intervenção, e na própria existência Dele. Da mesma maneira, eles demonstraram noções a respeito do arrependimento e da possibilidade de mudança do ser humano, inspiradas no relato da ressurreição de Lázaro, presente em 'Crime e Castigo'. Questionada sobre o porquê de tal narrativa integrar a história, uma apenada respondeu que “também nós podemos voltar da morte para a vida”.

As respostas foram em alguns momentos tão surpreendentes que ficamos aliviados em ter gravado, em áudio, todas as entrevistas, como provas da autenticidade de tão incríveis ou inesperados relatos. O material gravado integra os processos de execução penal de cada detento e funciona como subsídio para a decisão de redução da pena pelo aproveitamento da leitura, podendo ser fiscalizado pela Corregedoria-Geral da Justiça, pelo Ministério Público, pela OAB e pela própria Defesa do apenado, resguardado o sigilo.

O fato é que ninguém espera muito em termos de educação de quem está preso. Alguns mal sabem ler e só o aprendizado do manuseio de um dicionário já foi algo inédito em suas vidas. Porém, o que vimos como primeiro resultado foi algo surpreendente: detentos em quem não se depositava muitas esperanças deram entrevistas contundentes, demonstrando que leram a obra atentamente e, mais que isso, se interessaram pela leitura, pedindo mais. É claro que a remição de alguns dias na pena é um poderoso incentivador, tanto é que ouvimos algumas vezes “preciso destes dias, pois minha cadeia é grande”, mas é só isto mesmo, apenas um incentivo. Afinal, o que são meros 4 dias de pena para quem tem que cumprir 10, 20 anos? Nenhum dos participantes tentou enganar a equipe de avaliação, ao contrário, todos procuraram responder os questionamentos da maneira mais exata possível.

Entre os participantes há homicidas, estupradores, traficantes. Por mais que o sentimento social geral, e também o nosso em particular, seja de repúdio pelo crime, de respeito às vítimas, de rigor no sentido de que haja o total cumprimento das penas impostas, uma coisa é certa: algum dia essas pessoas, por pior que tenham sido seus crimes, sairão livres de volta à sociedade, ainda mais se levarmos em consideração a verdadeira desgraça que é a legislação penal e processual penal brasileira, pró-bandido, levíssima para muitos crimes graves. Hoje se mata cruelmente e em pouco tempo se está novamente nas ruas, por culpa tanto de leis construídas por pseudo-intelectuais que vivem distantes da realidade de insegurança e medo que reinam no país, quanto da própria Justiça que, por vezes, abranda a legislação de formas assustadoras ao interpretá-la (penas alternativas para traficantes? Progressão de regime para crimes hediondos?). Ainda que se administre a Justiça Criminal com rigor, cuidado e atenção preferencial aos direitos das vítimas, o certo é que a prevenção específica e concreta que a prisão representa pelo fato de o autor do crime ser retirado por um tempo de circulação é uma situação transitória, e de regra curta. Logo estarão todos soltos, então é melhor tentar algo em termos de reeducação também.

Hoje mais de 60 presos participam voluntariamente do projeto. É muito cedo para dizer se os objetivos de formação e aprimoramento do caráter, bem como ampliação do horizonte de consciência moral dos detentos foram ou serão atingidos. A educação, como tantas vezes já explicou o citado filósofo, é um projeto sem qualquer garantia de resultados. Entretanto, já se pode perceber que há um ar de reflexão por trás da leitura que os apenados fazem, de modo que é possível acreditar que estes grandes livros poderão ajudá-los a ter novas impressões e perspectivas acerca de si mesmos e da realidade concreta que a todos abarca.

Concluindo: nossas primeiras impressões são no sentido de que mais um vez e como de costume acertou em seu prognóstico o professor Olavo de Carvalho ao comentar o projeto e a primeira obra escolhida no programa TrueOutspeak de 28 de novembro de 2012: “vai funcionar”.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=asgAnH_STPM

Se entre as centenas de presos que terão essa oportunidade única de lerem Shakespeare, Dostoiévski, Konrad, Castelo Branco, Goethe, etc., sair meia dúzia de pessoas um pouco mais conscientes das responsabilidades de seus atos, fortalecidas no caráter e mais habilitadas para o inevitável retorno ao corpo social, já terá valido à pena. Afinal, como bem sempre nos lembra o Prof. Olavo, não é uma alma imortal humana mais duradoura e portanto mais importante do que toda a sucessão histórica?

20 de março de 2013
Márcio Umberto Bragaglia, Grasiele Juliana Christ & Augusto Cesar Becker

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