"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 11 de junho de 2013

FESTAS QUE HUMILHAM


Nasci em família bem constituída, e só podia ser assim. Nasci em um deserto verde, onde os vizinhos mais próximos ficavam pelo menos a dois quilômetros de distância e eram todos parentes. Isto é, a geografia tornava inviável até mesmo a infidelidade. Apesar de às vezes apanhar com vara de marmelo – por certo o merecia – sempre tive carinho por meus pais. Ou seja, não tenho razão alguma para rejeitar a célula familiar.

No entanto, nunca me senti bem junto a famílias. Participo daquela concepção de Alberto Moravia (se é que alguém ainda lembra dele), de que a família é uma fortaleza de egoísmo, onde os soldados são os filhos e os pais são os generais. Me identifico mais com aquele lobo da estepe, do Herman Hesse, o Harry Haller. Diria que, fora minha família, jamais convivi com qualquer outra. E mesmo com a minha meu convívio foi curto, pois saí do campo para a cidade aos 11 anos.

Durante toda minha vida, cultivei pessoas isoladas. Me sinto mais à vontade entre elas. Minha relação com a mulher que elegi não chegou a constituir o que se chama família. (Entendo que família implique filhos). E até hoje me relaciono quase que exclusivamente com outros lobos de minha estirpe.

É possível que, em meus dias de adolescente, dadas minhas leituras de anarquistas portugueses, eu tenha dirigido impropérios à bendita instituição. Não lembro. Lembro de já ter falado em “raça infame de maridos”, herança de Les oiseaux vont mourir au Pérou, filme dirigido por Romain Gary, de 1968. Mas diria que sempre aceitei a família como fato consumado, e não tinha nada contra, desde que a tal de família não se aproximasse muito de mim.

Não me importando com a família, para mim tanto fazia que fosse destruída ou não. Assim, as ameaças à família denunciadas por católicos e religiosos outros jamais me comoveram. Se estava ameaçada e era incapaz de enfrentar a ameaça, isto apenas significava que a instituição não era lá muito sólida. A discussão não me dizia respeito. Lembro que nos anos 70, quando se falava da introdução do divórcio no Brasil, não faltou quem falasse na morte da família e em atentado aos valores do Ocidente. Morreu coisa nenhuma. Com o divórcio, as famílias se multiplicaram.

Se nada tenho contra a família, algo que sempre abominei foram os dias dos pais, dias das mães. Sempre vi estas comemorações apenas como pretextos de vendas, da mesma forma que o Natal. Embora hoje costume relembrar meus seres amados que partiram nessas ocasiões, jamais festejei nenhuma delas. Enfim, se querem vender ou comprar, que comprem e vendam. Mas as celebrações destas datas em escolas me parecem particularmente cruéis.

Vivemos em um país onde há milhares de crianças sem pais, isso sem falar das que também não têm mães. Em qualquer colégio vamos encontrar órfãos e filhos de casais separados. Como fica uma criança que não tem a presença do pai e da mãe em meio a outras que festejam os seus? Deve ser no mínimo traumático para a criança. Todas as crianças em volta celebram o carinho paterno e materno e sempre haverá não poucas que disto sempre foram ou estão privadas.

Leio nas ditas redes sociais – e digo leio nas redes porque ainda não vi a notícia em jornal sério - que a prefeitura de Brusque, Santa Catarina, proibiu a realização de homenagens ao Dia das Mães e dos Pais nas escolas da rede municipal, com a argumentação de que alguns alunos poderiam ficar constrangidos. Pode ser.

Se for, a prefeitura não deixa de ter razão. Esses festejos constrangem não poucas crianças. Mas já quem esteja vendo a famosa conspiração contra os valores do Ocidente e o incentivo ao fim da família. Já tem até intelectuais falando em “ataques à família por parte dessa esquerda gramscista” na decisão da prefeitura de Brusque.

Que foi associada a uma Proposta de Emenda Constitucional da senadora Marta Suplicy, elaborada pela Comissão Especial de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a qual estabelece o Estatuto da Diversidade Sexual. “Gente, estamos chegando ao final dos tempos, ao fundo do poço. Está se querendo acabar com a maior das nossas heranças que é a família”, disse alguém. Seria o avanço da Quinta Internacional, a dos Gays, em luta contra o Ocidente.

Depois da queda do Muro e do desmoronamento da União Soviética, ficou um tanto démodé falar em luta de classes. Mas os filhos-da-luta, no dizer de Ira Levin, não podiam ficar sem causa. Logo após a derrocada, a palavra racismo invadiu a redação dos jornais. A luta agora era a do negro contra o branco. Ultimamente surgiu mais uma, a dos homossexuais contra os heteros. E a não-celebração das festas dos pais ou das mães foi saudada como resultado da revolução gay em andamento.

Confesso não saber por que razões a festa foi proibida, se é que foi proibida, pois parece que não foi. Segundo uma vereadora, não há uma proibição por parte da prefeitura e sim uma recomendação para que cada escola faça a homenagem da forma que achar conveniente, e que faça não só para mãe ou pai, mas sim para a família.

Tenha sido ou não proibida, sou pela proibição. Tais festas, cujo objetivo é meramente comercial, acabam humilhando alunos pobres, que não têm como presentear seus pais; alunos órfãos e filhos sem pai conhecido, que não têm de quem receber – ou a quem atribuir – afeto; e alunos de pais separados, que não entendem porque seus pais se separaram.

Por outro lado, tais festas alimentam a ficção de que a instituição familiar continua sólida e saudável e tem um belo futuro pela frente. Ora, a família está em rápido processo de dissolução – ou de transformação como quisermos – mesmo ao arrepio da legislação.

Em nome de um neologismo torto, a tal de homoafetividade, o STF rasgou a Constituição de uma penada e instituiu casamento homossexual no país. E a bigamia está sendo instituída pelos cartórios, com o apoio de uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", que admite a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta. No fundo, a antiga formulinha conhecida como matriz e filial, só que agora com o respaldo de tabeliões.

Assim que, se alguma criança se sentir constrangida ao ver uma outra com dois pais ou duas mães, o constrangimento foi legitimado pela suprema corte do país e por cartórios. Mas esse é constrangimento menor. Constrangimento mesmo é não saber o que é pai ou mãe.


11 de junho de 2013
janer cristaldo

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