"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 4 de julho de 2013

LIVROS QUE PASSAM


Mencionei há pouco Anaïs Nin e me vieram a mente não poucos autores do passado. Ou de meu passado, como quisermos. Uma boa safra deles parece ter morrido. Pareciam eternos. Lideraram os anseios e sonhos de não poucas gerações. Cada um de seus livros era esperado com sofreguidão. Não digo que fossem mestres, mas eram pelo menos faróis que nos diziam onde havia terra firme naqueles anos 60 e 70.

Quem lembra hoje de Herman Hesse? O Lobo da Estepe, datado de 1927, chegou um tanto atrasado ao Brasil. Não sei se foi editado entre nós no início do século, mas seu sucesso data dos 60. O livro conta a história de Harry Haller, um solitário de 50 anos, alcóolatra e intelectualizado, que vive à margem da sociedade. Sentia-se como um lobo isolado da alcatéia e contemplava com terna ironia as famílias reunidas no Natal em torno a um pinheiro. Certo dia, vê anunciado um teatro “só para loucos” e sua vida readquire um certo sentido, quando conhece Hermínia, Maria e o músico Pablo, com quem se envolve em jogos amorosos a três e quatro.

Confesso que pouco ou nada, além disso, ficou em minha memória do livro de Hesse. Recordo ainda de Sidarta e Demian, livros que levaram multidões de jovens peregrinos ao Oriente em busca de sabedoria. Se lá encontravam vigaristas tipo Osho ou Maharishi Mahesh Yogi, o guru celebrizado pelo maior lobby das drogas no Ocidente, os Beatles, isto era outro assunto.

Hesse teve em sua obra um daqueles monumentos intransponíveis, O Jogo das Pérolas de Vidro. Eu o tive durante muito tempo em minha bilbioteca e nunca consegui penetrar no livro. Enfrentei até mesmo o Dr. Faustus, do Tomas Mann, mas recuei diante do tijolo de Hesse. Chegue até mesmo a comprar a tradução espanhola, El Juego de los Abalorios, para ver se era mais palatável. Nada feito. Quem lembra dele, hoje? Os de minha idade, certamente. Os jovens estão lendo outros gurus, se é que estão lendo.

Outro autor que morreu e parece estar bem morto foi coqueluche em meus dias de universidade, Henry Miller. Seus Trópicos, o de Câncer e o de Capricórnio, vendiam como pão quente. Como também Sexus, Plexus e Nexus, da trilogia A Crucificação Encarnada. Mais Mundo do Sexo e Dias Calmos em Clichy. Para dourar a pílula, os editores viram em Miller um escritor confessional, só comparável a Santo Agostinho. Confessional era, sem dúvida alguma. Como o bispo de Hipona, viveu imerso em sexo. Mas estas obras nada têm a ver com Confissões ou A Cidade de Deus. Eram pornografia pura. Com a vantagem que nos traziam de ilhapa o dia-a-dia de Paris.

A fortuna de Miller, tanto em moeda sonante como literária, deveu-se em boa parte aos países que o censuraram. Proibido nos Estados Unidos e vários países europeus, Miller foi transformado em ícone da liberdade de expressão. Juristas pretenderam estabelecer uma bizantina diferença entre literatura erótica e pornográfica. Seja qual for a distinção, a obra de Miller era putaria mesmo. Disto ele estava ciente, tanto que afirmava que o sucesso dos Trópicos foi devido à Segunda Guerra: eram os livros prediletos dos soldados no front.

Mas Miller teve também uma obra reflexiva, onde sexo não tinha lugar. É o caso de O Colosso de Marússia, livro de viagem onde narra a sua estada na Grécia – para onde fugiu durante a guerra - e o seu deslumbramento ao conhecer o poeta Katsimbalis. Ou o Tempo dos Assassinos, um estudo sobre Rimbaud. Ou ainda Primavera Negra.

Miller considerava ser o Colosso o melhor de seus livros. De minha parte, concedo esta honra a outro, The Books in my Life, em que o escritor discorre sobre suas leituras, que não foram poucas. Para Miller, uma boa biblioteca não exige mais que cinqüenta livros. O problema é eleger estes cinqüenta. Seja como for, o leitorado de Miller sempre preferiu sua obra pornográfica. Parecia eterna. Mas depois surgiu a pornografia em imagens, na fotografia, no cinema e hoje, na Internet. O espaço de Miller foi ocupado pela tecnologia.

Outro esquecido, Lawrence Durrel. Seu Quarteto da Alexandria, escrito no final dos 50 - Justine, Balthazar, Mountolive e Clea - nos encantaram com os europeizados salões egípcios, de um requinte que nada tinha a ver com o Islã. Mais tarde publicou The Avignon Quintet, que já não teve público no Brasil. Li avidamente o Quarteto. Que me sobrou dele? Nada. Só lembro que cada livro era a mesma história, vista pela ótica do personagem-título. A bem da verdade, restou-me uma frase: que a amizade é sentimento mais sólido e duradouro que o amor.

Outro que morreu foi Witold Gombrowicz, polonês que se refugiou em Buenos Aires durante a Guerra. Sua troca de país foi acidental. Havia embarcado em um navio para a Argentina e no dia seguinte eclodiu a Segunda Guerra. Claro que o polaco achou melhor ficar nos mares do Sul. Seu primeiro livro de contos, Bakakai, foi publicado na Argentina. O título evoca terras a nós estrangeiros, mas não é nada disso. Era apenas o nome da rua em que morava em Buenos Aires.

Acho que comprei todas suas novelas: Ferdydurke, Cosmos, Transatlântico, Pornografia – que, diga-se de passagem, nada tinha de pornográfico. Ou tem, conforme definirmos pornografia. Dois personagens, intelectuais e solteiros, se divertem em observar, em uma propriedade rural na Polônia, os arroubos de um casal de adolescentes, dissecando impiedosamente cada um de seus gestos, aparentemente inocente. Gombrowicz era obcecado por juventude, onde via o fascínio da imperfeição.

"O homem está suspenso entre Deus e a juventude. Isso quer dizer que o homem tem dois ideais, a divindade e a juventude. Ele quer ser perfeito, imortal, onipotente. Ele quer ser Deus. E ele quer estar em plena florescência, fresco e róseo, para sempre instalado na fase ascendente da vida - ele quer ser jovem."

Quem lembra destes autores, que um dia foram guias de uma juventude que se pretendia rebelde? Foi um momento. Se os retomarmos, têm ainda muita coisa a dizer-nos. Muito mais certamente que os autores contemporâneos. Mas jazem esquecidos na poeira das bibliotecas.

Tem mais. Pitigrilli, Papini, Moravia, Wilhelm Reich, Tomas Mann, Mrozek e tantos outros que jazem esquecidos. Qualquer dia volto ao assunto. Minha biblioteca, hoje, está mais para sebo. Foi fundamental para minha formação. Curiosamente, se a revisito, parece-me estar entrando em um mundo do qual esqueci as formas.


04 de julho de 2013
janer cristaldo

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