"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

DOUTORADO EXIGE CERVIZ GACHA

- Quando você fez seu doutorado – me pergunta um leitor - você teve de se adequar à uma linha de pesquisa pré-determinada pelos orientadores, ou teve mais liberdade em escolha de tema, autores etc?

A pergunta me soa estranha, porque em meu doutorado nunca ouvi falar em linha de pesquisa pré-determinada, muito menos em liberdade de tema. Me propus desenvolver uma tese dentro de uma área que conhecia palmo a palmo e com um autor a quem admirava. Não era questão de escolha de tema ou autor. Estes foram por mim determinados e eu não me afastava um milímetro sequer de meu projeto.

Confesso que não sei muito bem como se passa este processo na universidade brasileira. Quando terminei as minhas, mergulhei no jornalismo e da universidade só queria distância. Se a ela voltei, não foi por nenhuma ambição acadêmica e sim pelo desejo de viajar. Vi que havia uma seleção para bolsas na França. Ora, uma bolsa na França era tudo o que queria. Mas tinha de ser em terreno confortável. Estava traduzindo Sábato na época e o autor me fascinava. Meu tema seria Sábato. Logo, seria uma bolsa na área de Letras. Ou não seria bolsa nenhuma.

O consulado simpatizou com meu currículo e havia manifesta intenção de dar-me a bolsa. Tanto que o adido cultural perguntou-me se não podia ser em outra área, já que as bolsas literárias eram escassas. Não poderia ser Direito? Poder, poderia. Eu tinha curso de Direito. Mas como estudar a obra de Sábato em um curso de Direito? E com Direito eu não queria nada. Respondi que não me dispunha a mudar de área. Era literatura – e no caso a literatura de Sábato – ou bolsa nenhuma.

Disputei a seleção e após peripécias que passo por cima – os brasileiros da comissão franco-brasileira em Brasília vetaram meu nome na primeira candidatura – acabei recebendo a bolsa. Como eu havia proposto um estudo comparativo entre El Túnel, do argentino, e L’Étranger, de Camus, me pareceu que a área adequada seria Literatura Comparada. Apenas me pareceu, já que de literatura comparada eu nada entendia.

Recebida a bolsa, em Paris um professor sugeriu que eu trocasse de área, fizesse a pesquisa em literatura espanhola. Acontece que eu havia recebido a bolsa para Literatura Comparada e, se já a havia recebido, não via porque mudar de área. Como nada entendia do riscado, comprei alguns ensaios na área para ver como é que era. Jornalista, não me pareceu ser algo fora de meu alcance desenvolver uma reflexão sobre a obra de dois autores que tinham não poucos pontos em comum.

Uma vez determinado meu orientador, nova proposta. Ele jamais ouvira falar em Sábato. Propôs que eu fizesse um paralelo entre L’Étranger e La Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela (que, por obras do acaso, acabei traduzindo mais tarde). Ocorre que eu nada conhecia de Cela, na época. Sem falar que, antes disso, havia passado por Santos Lugares e dito a Sábato que ia para Paris com o propósito de estudar sua obra. Não poderia voltar atrás.

Meu orientador, que não sabia se Sábato era açougueiro ou alfaiate, não discutiu. Foi até a Bibliothéque Nationalle e descobriu que o argentino já possuía considerável fortuna literária nos Estados Unidos e Europa. Aceitou meus arrazoados.

Esse cara, pensei com meus botões, nada conhece do autor. Vai me atrapalhar com hipóteses sem rumo. Decidi então que não o consultaria e entregaria o trabalho já em fase de conclusão. A única coisa que ouvi dele, em meus quatro anos de Paris, foi: “une thèse a trois parties: la première, la deuxième et la trosième". Muito pouco conversamos. Não me atrapalhou.

- Janer, lhe perguntei isso porque sábado passado minha turma recebeu instruções sobre a monografia. Aí quando o coordenador do curso falou, ele explicou como funciona o mestrado e o doutorado. Basicamente, não há nenhum espaço para idéias novas. O interessado deve aderir a uma linha de pesquisa (definida estritamente pela chamada "comunidade") e todo o trabalho dele passa por ali.

Bom, eu não recebi instrução nenhuma. E foi ótimo que assim fosse, pois não estava lá para receber instruções. Eu sabia raciocinar, sabia escrever, sabia o que pretendia escrever e não tinha, portanto, razão alguma para receber instruções. Tese é uma porção de páginas que faz uma afirmação, não é isso? Essa afirmação precisa ser avaliada por uma banca, não é verdade? Então eu fazia minha parte e a banca que fizesse a sua. E fosse lá o que Deus quisesse. Eu não tinha compromisso algum com a universidade brasileira, muito menos com as Capes e CNPqs da vida.

Na verdade, não tinha interesse algum em tese nenhuma. Queria curtir Paris, seus vinhos, suas mulheres, seus queijos. Fosse ou não fosse aprovada minha tese, tanto fazia como tanto fizesse. Em verdade, nem precisaria tê-la desenvolvido. Os franceses não reclamariam. Mas havia me proposto a algo, tinha compromissos com duas pessoas, com Sábato e comigo mesmo. Não me custava nada, em quatro anos, escrever duzentas pagininhas. Afinal, em meu trabalho jornalistico, que mantive em Paris, eu escrevia duas ou três por dia.

Havia o problema do método, coisa da qual eu não tinha a mínima idéia do que fosse. Fiz então um seminário sobre teoria, com um professor chamado Decaudin. A cada aula, eu tinha de morder a língua para não cometer algum lapso e chamá-lo de M. Décadent. Só ouvi bobagens. E decidi que minha tese não teria método algum.

Que é método? No fundo, é um freio à livre expressão. Significa assumir o pensamento de um terceiro para analisar o autor que você – supostamente um desprovido de cérebro – vai analisar. O teórico tem de ser de Primeiro Mundo. Você pode utilizar teorias geradas às margens do Tâmisa, do Spree, ou do Sena. Jamais geradas às margens do Tocantins ou do Prata. Teórico há de ser um britânico, um alemão, um francês. Jamais um brasileirinho ou paraguaio. À la limite, um italiano serve. Mas não pode ser português ou espanhol.

Ora, desprovido de cérebro eu não era. E não havia ido à Europa para pedir emprestado o cérebro de um europeu para analisar uma realidade latino-americana. Decidi que minha tese não teria método algum. Exceto o velho e bom método aristotélico: se A = B e B = C, então A = C. Elaborei minhas reflexões a meu gosto, sem chamar os Lacans ou Saussures da vida. Ocorre que, se existem leis na Física, quando se trata das elaborações espirituais do ser humano não existe lei alguma.

Não tenho idéia quando surgiu essa mania de método na elaboração de uma tese literária. Como a pesquisa em ciência exige sempre um protocolo, ao que tudo indica, em determinado momento, os professores da área humanística, para dar uma aura científica a suas teses, importaram a idéia para o universo da letras. E eliminaram qualquer tentativa de criação original.

Professor que utiliza ou exige método é um descerebrado, incapaz de pensar por si próprio. Uma colega nordestina, mal chegou a Paris, descobriu isto: eu quero eleger um método, eu não quero pensar. Em meus dias de magistério, uma aluna perguntou-me: professor, qual é seu método?

- Nenhum, minha querida?
- Como nenhum?
- Nenhum. Nada. Zero. Pensa com tua própria cabeça.

A menina saiu atordoada. Jamais vira tal absurdo. Onde se viu, na universidade, pensar com a própria cabeça?

Se meu orientador não me exigiu método, o mesmo não ocorreu com uma doutora da banca. Não admitia tese sem metodologia. “Où est votre méthode?” – questionou-me. Respondi que não havia ido à França para pensar com a cabeça de terceiros. Pensava com a minha. “Ma méthode, c’est la cristaldesque”.

Após longos e tensos debates entre os membros do júri, a tese foi aceita. Atribuo um pouco esta concessão à platéia. Na salle Bourjac, da Sorbonne, havia entre cinqüenta e sessenta mulheres, e um único rapaz. Não só a banca, como eu e minha mulher, estávamos perplexos. “Trabalhaste duro neste tempo todo” – me disse a Baixinha. Bom, confesso que tinha me esforçado. No fundo, penso que devo àquelas meninas minha aprovação. Seria uma grosseria rejeitar meu trabalho ante platéia tão florida.

Sou doutor por diletantismo, não por projeto. Cansei de ver, no Brasil, jovens se submetendo aos métodos férreos de seus orientadores, no que não vai nenhuma surpresa: jovem é sempre cauteloso, para não dizer covarde. Triste é ver doutorandos carecas se submetendo à metodologia de professores jovens e bitolados.

- Existe uma liberdade pequena no doutorado – continua o leitor - mas o mestrado funciona de acordo com o que querem os intelectuais que vivem em suas torres de marfim e decidem o que deve ser pesquisado ou não. Esses títulos só servem para currículo e ganhar mais dinheiro. Quem quiser liberdade, deve escrever um livro e lançar por conta. Com o meio universitário (Direito que o diga) tomado de assalto pelas esquerdas e o politicamente correto (direito ambiental e direitos humanos estão na moda), duvido que terei alguma chance de trabalhar com algum autor como o Raymond Aron.

O leitor já entendeu o mundo em que vive. Claro que não vai pesquisar Aron. Aron, além de não ser de esquerda, sempre foi inimigo figadal das esquerdas. Se quiser ser original, que desista da academia. Ou dobra a cerviz, ou nada feito. Toda defesa de tese é teatro. Quando você enfrenta a banca já sabe que terá sua tese aprovada. Os orientadores se precaveram para que você não cometa heresias.

Seja submisso e será aprovado cum laude. Antes que me esqueça: até hoje não peguei meu diploma de doutorado. Quando fui apanhá-lo na secretária da Sorbonne Nouvelle, uma velhota burocrata me atalhou: “C’est pas comme ça, Monsieur!” Meu diploma estava ali, do outro lado do balcão. Mas eu precisava enviar uma carta à universidade e esperá-lo em casa. Ora, eu já estava de pé no estribo, entregando as chaves do apartamento. Desisti. Não fui a Paris buscar um papelucho.


07 de agosto de 2013
janer cristaldo

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