"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 13 de agosto de 2013

FINS E MEIOS DA POLÍTICA: DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

           
          Artigos - Cultura 
Se os ideais da política são importantes para o aperfeiçoamento da experiência política, há que se perguntar: esses fins são dados pela ordem natural das coisas ou criados pelos agentes políticos?


Ian Shapiro, politologo norte-americano, termina sua obra “Os Fundamentos Morais da Política” afirmando que
“a abordagem democrática estimula a reforma dos costumes herdados, pelo modo como são reproduzidos no futuro: minimizando-se a dominação que eles são capazes de favorecer, por meio da pressão para que o processo decisório seja realizado em conformidade com o princípio do interesse afetado, e abrindo-se espaço para que uma oposição significativa possa existir. A democratização, quando funciona bem, conduz a um mundo no qual as práticas coletivas adquirem, e merecem, uma crescente legitimidade”.

De acordo com essa afirmação há, no que tange a legitimação da decisão política, uma tensão entre a herança consuetudinária e a democracia. Ousamos, contudo, dizer que tal afirmação é parcialmente certa.
De fato, quando os costumes corporificam hábitos destrutivos para a ordem social, para as instituições e o bom andamento do processo governamental, sim, a dominação levada a termo pela herança dos costumes é negativa para o bem comum, já que afeta a totalidade do corpo político. Porém, quando a tradição oferece a estabilidade necessária para a legitimidade política das instituições, então temos de aceitar que a tradição favorece a própria democracia.

É comum, dentro da perspectiva iluminista, identificar a tradição com a ancien régime, depositando sobre o passado toda sorte de malefícios públicos e toda opressão sobre as camadas populares. Por outro lado, é uma tendência desse itinerário ideológico confundir o progresso da civilização com a maximização da democracia, como se o povo fosse o substituto ideal do rei.  
A máxima “Vox populi, Vox Dei” não simboliza apenas a projeção imanentista do espírito secular sobre o povo, mas o entende como portador da verdade e do consenso.

Há, nesse sentido, enorme diferença entre a democracia concebida como regime político e a democracia entendida como teologia política. No primeiro caso, a sociedade política é vista como elo funcional e teleológico do poder, ou seja, funcionamento e finalidade da política. No segundo, o povo é visto como único fundamento do poder, como sua expressão genuína. Há um risco em entendê-lo assim.

Colocando sobre o povo a fundamentação da política, se está a admitir sua infalibilidade; o povo é o portador da verdade, a voz do povo é a voz de Deus. Tomás de Aquino, no seu “Regime dos Príncipes”, utiliza a expressão multidão para designar a matéria-prima do corpo político, formado pela união indissolúvel da comunidade com a autoridade.
É em razão do bem comum, fim da ordem social, que a legitimidade é auferida. Apenas na mediação entre esse fim e a comunidade é que a autoridade pode ser julgada segundo seus atos.

A concepção iluminista e moderna de povo ignora a noção de finalidade. Diante disso, o povo é visto como uma massa amorfa, expressiva da uma legitimidade autossuficiente, sem vínculos com quaisquer bens humanos básicos. Basta a vontade popular tout court para que os atos políticos alcancem legitimidade civil. A vontade do povo, em suma, não encontra freios no mundo real.

Contra essa noção, é mister reconhecer que sem fins, a política resta fossilizada ao sabor das paixões e dos interesses momentâneos, transformando-se em palco de ideologias, conflitos, aparelhamentos e utilitarismos. Há que se distinguir o mundo dos fatos e dos valores, da experiência e dos bens objetivos, da realidade e da idealidade.
Mas, enquanto não assumirmos que os fins são necessários para a própria perfeição da realidade, não estaremos aptos a tecer vínculos verdadeiros e fortes entre os dois mundos aludidos.

Portanto, se os ideais da política são importantes para o aperfeiçoamento da experiência política, há que se perguntar: esses fins são dados pela ordem natural das coisas ou criados pelos agentes políticos? Caso a segunda hipótese esteja correta, então teremos de admitir que o mundo político é um espaço aberto para a destruição, para o caos e para a desordem, de modo que o consenso nunca será capaz de garantir a estabilidade necessária para a convivência humana.

Sim, pois os agentes criariam fins segundo suas próprias convicções ideológicas e/ou por mero desejo de poder. Mas, se aceitarmos que existem realmente valores humanos objetivos, verdades morais próprias da natureza humana e que a política é uma operação coletiva pedagógica no intento de realizar esses fins mais nobres e excelentes, então nossa percepção do que seja a política terá de levar em consideração que a experiência política, em meio ao emaranhado de contradições e tensões, almeja o bem comum, isto é, a máxima realização da felicidade na comunidade política.

Sendo assim, então será importante reconhecer que os bens humanos são vínculos necessários para a autoridade e que esta, no exercício de suas atividades, deve tentar relacionar o mundo dos fatos ao mundo dos valores.

O reconhecimento da palavra povo no debate político e filosófico só terá alguma racionalidade objetiva, veiculada aos bens humanos e aos valores fundamentais quando entendida como falível e suscetível ao erro. Nesse sentido, há que se indagar: se o poder do povo é passível de erro, então há alternativa para correção? Existem meios de limitar o poder de ação desse povo a fim de enquadrá-lo em uma noção maior de legitimidade? Se há, quais são?

É a partir dessas perguntas que os bens humanos aludidos entram em cena. Digo: assumem caráter cada vez mais jurídico. A velha tensão constitucional entre o jurídico e o político encontra aqui um selo constitutivo, marcante para os tempos atuais: sendo valores objetivos, isto é, correspondentes à natureza humana como tal, como são juridificados os bens humanos?

Para tal, é importante considerar duas acepções possíveis para responder à pergunta. Primeiro, que para se tornarem direitos, os bens devem ser expressos juridicamente; e em segundo lugar, que devem ser mantidos pelo restante do Direito. No primeiro caso, estamos falando de “direitos fundamentais”. No segundo, de suas “garantias”.

Materialmente, os bens humanos são direitos fundamentais. No segundo caso, devem ser garantidos pelo sistema jurídico mediante processos e procedimentos aptos a manter a integridade desses direitos.
Nesse sentido, é necessário assumir que a democracia e os direitos fundamentais, enquanto dimensões dos bens humanos básicos demandam-se reciprocamente.

Sim, pois sendo o poder do povo passível de erro, as faltas e os excessos serão corrigidos de acordo com os direitos e as garantias fundamentais. Por outro lado, o caráter estático e pacífico dos direitos fundamentais exige um princípio ativo no corpo político, que ocorre mediante a participação da comunidade no processo político e na tomada das decisões.

13 de agosto de 2013
Marcus Boeira

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