"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

EMIL CIORAN: PESSIMISMO, CONTRADIÇÕES E APATIA

Artigos - Cultura

Talvez, um dia, venhamos a descobrir que Emil Cioran foi, na verdade, um agent provocateur financiado por certo clube de monomaníacos ou de excêntricos que, nas horas vagas, divertiam-se em ver como as intelligentsias podem ser seduzidas por qualquer truanice. Cioran almeja o caos, ama-o; está seduzido pela desordem e pelo desejo de sabotar a civilização. Exatamente por esse motivo devemos ler seus livrinhos, esgotados no Brasil desde a década de 1990, mas agora relançados pela Editora Rocco, e conhecer seus raciocínios contraditórios, agressivos e fúteis.

A grande meta que Cioran se propôs foi a de erigir algumas generalizações de impacto à categoria de pensamento filosófico – em suma, é um sofista. Vejamos alguns exemplos, todos risíveis: referindo-se a Ivã, o Terrível, afirma: “Tinha a paixão pelo crime” – e conclui: “Todos nós, enquanto existimos, também a experimentamos, seja atentando contra os outros ou contra nós mesmos”. Para ele, “todos os homens são mais ou menos invejosos; os políticos o são completamente” – afirmativa ainda mais infamante quando se lê a conclusão: “Se a inveja te abandona, és apenas um inseto, um nada, uma sombra”. Sem deixar de lado seu tema predileto, ele continua: “Uma sociedade que se quisesse perfeita deveria colocar na moda, ou tornar obrigatória, a camisa de força, pois o homem só se move para fazer o mal”. E insiste: “[...] O homem prefere apodrecer no medo do que enfrentar a angústia de ser ele mesmo”.

Frases que impressionam, claro, se visitadas antes dos dezoito anos. Mas, depois que entramos na vida adulta, deixamos de lado radicalizações, esquerdismos e simplificações; Nietzsche passa a ocupar uma posição secundária em nossa biblioteca; e desencantados com o niilismo panfletário, alegria dos anarquistas, podemos ler Cioran como ele merece: como literatura, nada mais.

Ao reler História e utopia, certa imagem se repetiu diante dos meus olhos: a da pantera de Rilke, presa em sua jaula no Jardin des Plantes: o olhar fatigado que só enxerga as grades; o “passo elástico e macio”, repetido “dentro do círculo menor”, urdindo, a cada volta, “uma dança de força”, em cujo centro “uma vontade maior se aturde” – para tudo se apagar no coração. Esse é o nosso escritor: ruge de maneira estrondosa, mas seu ceticismo não lhe permite arrebentar as grades da prisão. Ao contrário, depois de esbravejar, direta ou indiretamente, contra os fundamentos da civilização ocidental – a democracia, o direito romano, o cristianismo –, ele nos oferece uma lenga-lenga budista, propondo que o homem se mantenha numa “posição equidistante da vingança e do perdão, no centro de uma cólera e de uma generosidade igualmente fracas e vazias, destinadas a neutralizar-se uma à outra”. É o que ele chama de “meio-termo entre o cadáver e o alento”, ou seja, uma existência vegetativa, um marasmo que nos “reconcilie com o tédio”.

Cioran vocifera imerso até o pescoço no seu pântano de angústia e deseja nos convencer de que “um vazio que concede a plenitude contém mais realidade do que a história em seu conjunto” – ideia que não passa de um convite à ataraxia – e de que, para encontrarmos o paraíso escondido “no mais profundo do nosso ser”, devemos “ter recorrido a todos os paraísos, desaparecidos e possíveis, tê-los amado e detestado com a rudeza do fanatismo, tê-los escrutado e rejeitado depois com a competência da decepção” – exemplo de lirismo negativista.

Na opinião de Cioran, cada gesto humano só conspurca o universo “criado para a indiferença e a estagnação”. Vejam o que fala sobre os amigos: “Quando nos concedem alguns elogios, estes são acompanhados de tantos subentendidos e sutilezas, que a lisonja, de tão circunspecta, equivale a um insulto. O que eles desejam em segredo é nosso enfraquecimento, nossa humilhação e nossa ruína”. Pessimismo por pessimismo, é melhor ficar com Augusto dos Anjos, que disse o mesmo, mas meio século antes e sem a pretensão de fazer filosofia: “[...] O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja. // Se a alguém causa inda pena a tua chaga, / Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!”.

Em “A Rússia e o vírus da liberdade”, Cioran acerta ao definir a utopia como “o grotesco cor-de-rosa” [grifo no original] ou “um conto de fadas monstruoso”. Mas não nos enganemos com sua retórica. Acima de tudo, nosso ficcionista é contraditório. Páginas antes, no capítulo “Sobre dois tipos de sociedade”, recrimina o mundo ocidental por não ter abraçado o comunismo (o texto é de 1957): “Quando teria sido seu dever pôr em prática o comunismo, ajustá-lo a suas tradições, humanizá-lo, liberalizá-lo e propô-lo depois ao mundo, deixou ao Oriente o privilégio de realizar o irrealizável e extrai assim poder e prestígio da mais bela ilusão moderna”. E mais à frente, em “Mecanismo da utopia”, enaltece as revoluções que despojam os homens de suas propriedades: “Para readquirir uma aparência humana, para recuperar sua ‘alma’, é preciso que o proprietário se veja arruinado e que consinta em sua ruína. A revolução o ajudará”. E insiste em seu demente projeto salvífico: “É, portanto, enquanto agente de destruição que [a revolução] se revela útil; ainda que fosse nefasta, uma coisa a redimiria sempre: só ela sabe que tipo de terror usar para sacudir esse mundo de proprietários, o mais atroz dos mundos possíveis”.

Da mesma forma, execra redentores e profetas, acusando-os de serem “possuídos por uma ambição sem limites” e por disfarçarem “seus objetivos sob preceitos enganosos”. Mas passadas poucas páginas, fala e se descreve como profeta, ao assegurar que o mundo moderno caminha para a tirania e concluir, sem falsa modéstia: “É uma certeza que participa tanto do calafrio como do axioma. E adiro a ela com o arrebatamento de um agitador e com a segurança de um geômetra”.

Pagão grandiloquente – segundo ele, Satã “mal se distingue de Deus, pois é apenas sua face visível” –, Cioran quer nos acorrentar a uma desilusão insuperável e nos convencer de que agir com bondade significa destruir tudo o que o homem tem de melhor: “Um pequeno vício é mais eficaz que uma grande virtude”. Pensador de bolso, desses que citamos nas festas para impressionar desavisados, parece falar de si mesmo ao se referir a “um deus febril, obcecado, sujeito a convulsões, embriagado de epilepsia”. Mas encerremos de forma cavalheiresca: é mais fácil escrever como Cioran do que filosofar.

Rodrigo Gurgel, 20 Fevereiro 2012
Publicado na revista Dicta & Contradicta.
Rodrigo Gurgel é escritor e crítico literário.

Um comentário:

  1. quanto simplismo. e também um visível desconhecimento do pensamento de Cioran.

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