"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O ANTROPÓLOGO CLAUDE-LÉVI-STRAUSS DETESTOU A BAHIA DE GUANABARA...

Sim, é verdade. Está em Tristes Trópicos, misto de relato de memórias e ensaio antropológico que resume as passagens do teórico estruturalista pelo Brasil – e inspirou o verso da canção ‘O Estrangeiro’, de Caetano Veloso. Está também na recém-lançada biografia Claude Lévi-Strauss – O Poeta no Laboratório, de Patrick Wilcken (Objetiva, 398 pgs. 44,90), que lá pelas tantas escreve:

“Quando o navio entrou no porto do Rio, Lévi-Strauss sentiu uma decepção que se tornou famosa. Apesar do esforço mental, o cenário feria seu senso de proporções clássicas. O Pão de Açúcar e o Corcovado pareciam grandes demais em relação ao conjunto, como ‘tocos… numa boca desdentada’, como se a natureza tivesse deixado para trás uma obra inacabada, assimétrica.”

O trecho é revelador por mostrar que o gosto do jovem antropólogo estava relacionado desde cedo com a ideia de simetria que faltava na paisagem carioca – o que é coerente com as melhores impressões que lhe causaram as geometrias urbanas de São Paulo e Brasília. Essa ideia seria fundamental na formulação do movimento estruturalista, que revolucionou as ciências humanas nos anos 60 e teve repercussões profundas nas obras de autores tão distintos quanto Roland Barthes e Jacques Lacan.

Ele próprio um pesquisador dedicado, também autor do excelente Império à Deriva, sobre a Corte portuguesa no Rio de Janeiro, Patrick Wilcken constrói um retrato convincente de seu biografado, ainda que nem sempre consiga superar o muro de silêncio e introspecção com que o antropólogo protegia a sua privacidade. Lévi-Strauss, como se sabe, morreu em 2009, pouco antes de completar 101 anos, mas a longevidade foi inversamente proporcional à sua projeção na mídia. Distante da imagem pública de intelectual engajado associada a pensadores como Jean-Paul Sartre (a quem atacou no último capítulo de O Pensamento Selvagem) e Michel Foucault, Lévi-Strauss foi um pensador solitário, cético em relação à política, encerrado em suas pesquisas, que parecia não viver além dos limites de sua obra. Como declarou numa entrevista em 1990, “O que importa é a obra, não o autor que por acaso veio a escrevê-la; eu diria antes que ela se escreveu através dele. O indivíduo não passa de um meio de transmissão.” Ou ainda: “Não tenho vida social, não tenho amigos. Passo metade de meu tempo no laboratório, e o resto em meu escritório”.
Wilcken demonstra que não foi bem assim – por exemplo, quando, narrando a infância do antropólogo em Paris, revela que a vanguarda nas artes plásticas na França representou a ruína financeira de seu pai, pintor acadêmico; ou quando sugere que a separação de Lévi-Strauss de sua primeira mulher, Dina, também antropóloga, teve relação com cartas amorosas trocadas por ela com Mário de Andrade; ou, ainda, quando descreve as aventuras boêmias de Lévi-Strauss em seu forçado exílio novaiorquino – sendo judeu, precisou deixar a França, que vivia uma atmosfera de anti-semitismo crescente.

É curioso observar que as primeiras viagens ao Mato Grosso, Goiás e Paraná em 1935, pelas quais Lévi-Strauss ficou mais conhecido, foram de certa forma um fracasso. O planejado trabalho de campo esbarrou, já naquela época, no processo de aculturação e empobrecimento da maioria dos povos indígenas com que conseguiu estabelecer contato, e o antropólogo registra essa frustração em suas memórias. Wilcken escreve:

“Ansioso em consagrar-se como antropólogo, agora ele estava na iminência de ter os contatos exóticos sobre os quais tanto lera em Paris. Mas o que encontrou ao entrar num pequeno acampamento de Tibagi nas matas do parané foi um banho de realidade. Espalhados no chão de terra das palhoças estavam os refugos da industrialização – pratos de alumínio esmaltado, utensílios vagabundos, os ‘restos da carcaça de uma máquina de costura. (…) Ele saiu com a impressão de que ‘não eram índios de verdade, nem, omais importante, selvagens. (…) Chegara tarde demaisO que sobrara era a borra cultural, uma triste mistura de tradição e modernidade mutuamente corrompidas.”

Isso não o impediu, por outro lado, de trocar miçangas coloridas, cortes de tecido e bugingangas por centenas de peças de artesanato, que levou para Paris, onde seriam expostas em museus – para deleite dos civilizados. O que Lévi-Strauss assume com naturalidade, aliás: confrontado com a crítica de que os museus criam uma aura de exotismo em torno das culturas alheias, ele respondeu, simplesmente, que “a Antropologia é uma ciência etnocêntrica por excelência”.

Leia um trecho do livro aqui.

Foi na expedição seguinte ao Brasil Central, em 1938 – narrada em detalhes por Wilcken, que prenche os “brancos” deixados em Tristes Trópicos – que se plantou na mente de Lévi-Strauss a primeira semente do Estruturalismo. Foi quando chamou sua atenção, no contato com os Bororos, a disposição da aldeia – um círculo de ocas das famílias em volta de uma casa comprida central reservada aos homens:

“Lévi-Strauss examinou todas as ocas e marcou todas as relações entre elas. No chão do terreiro, desenhou diagramas das várias divisas imaginárias, os setores assim formados e a divisão de direitos, deveres, hierarquias e reciprocidades que definia esses setores. (…) Resultava um balé, ‘no qual as duas metades da aldeia lutam para viver e respirar uma pela outra e para a outra. trocando mulheres, posses e serviços numa reciprocidade intensa: entrecasando os filhos, enterrando mutuamente os mortos’. O sistema era tão entranhado nos bororos (…) que uma mudança na planta da aldeia levava a uma rápida deterioração cultural.”

A segunda semente foi mais prosaica. Às vésperas da invasão da França pela Alemanha, o antropólogo passeava por uma floresta na fronteira com Luxemburgo quando se deparou com um punhado de dentes-de-leão e se entregou a uma “intensa contemplação intelectual”:

“Examinou o halo cnza da cabeça de um dente-de-leão, com suas centenas de milhares de filamentos criando uma atmosfera perfeita. Como aquela planta, e todas as outras, tinha chegado a uma finalização tão geométrica e regular? ‘Foi lá que descobri o princípio organizador do meu pensamento’, comentou mais tarde. O dente-de-leão era o resultado do jogo entre suas propriedades estruturais, calibrado numa forma única e instantaneamente identificável. (…) A ideia de que a cultura, tal como a natureza, podia ter seus próprios princípios de estruturação – ocultos, mas em última instância determinantes, como os códigos genéticos que produziam a geometria da natureza – iria moldar grande parte do trabalho subsequente de Lévi-Strauss, quando deu início à sua análise de fenômenos culturais e sociológicos como o parentesco, o totemismo e o mito.”

A partir daí os desdobramentos do pensamento e da obra de Lévi-Strauss foram quase naturais, consistindo na aplicação sistemática da ideia de estrutura às relações de parentesco, à mitologia, às formas de preparar alimentos, a questões estéticas etc. Tratava-se de identificar padrões comuns a diferentes culturas, mostrando a complexidade oculta na organização social dos povos “selvagens”, repensando de forma radical a oposição entre natureza e cultura e deslocando o interesse do sentido para a forma. Livros como As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Antropologia Estrutural (1958), O Pensamento Selvagem (1962) e O Cru e o Cozido (1964) são ilustrações desse projeto essencial – desvendar as simetrias invisíveis que se encontram entre todas as culturas, identificar elementos universais na atividade do espíritoque atravessariam os grupos humanos no tempo e no espaço. Foram também etapas da consolidação de uma bem-sucedida carreira acadêmica e de uma vasta produção intelectual, que merece ser regularmente revisitada.

LEIA TAMBÉM:
Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss. Companhia das Letras, 456 pgs. R$72,50.

“Narrativa de viagem ou ensaio de ciência? Em sua prosa poética, melancólica, irônica, Lévi-Strauss desloca parâmetros consagrados, questionando ao mesmo tempo viajantes e cientistas. Sua imaginação criadora nunca abre mão da reflexão lógica mais rigorosa. O Brasil que aqui se revela está muito além da provinciana cidade de São Paulo. Pois o mundo perdido dos cadiueu, dos bororo, dos nambiquara e dos tupi-cavaíba tem seus próprios estilos e linguagens. Tristes trópicos é não só um clássico da etnologia e dos “estudos brasileiros”, mas uma obra universal, sem fronteiras, sobre a crise do processo civilizatório na modernidade.”


De Perto e de Longe de Claude Lévi-Strauss e Didier Éribon. Cosac Naify, 272 pgs. R$39
“Dom Quixote da antropologia, é assim que Lévi-Strauss aceita se definir aos 80 anos, ao conceder ao filósofo francês Didier Eribon esta longa entrevista. O antropólogo faz um balanço que entremeia história pessoal, formação intelectual e conceitos-chave de sua teoria. Além de relatos sobre o fascinante convívio com grandes pensadores do século XX (Lacan, Duchamp, Ernst, Jakobson, Braudel, Merleau-Ponty, Boas), Lévi-Strauss enreda o leitor pela fluidez no trato das questões espinhosas que levantaram polêmica em torno de sua obra. O conceito de estrutura, , o mal-entendido da definição de sociedades “quentes” e “frias”, o debate com Sartre, o destino da antropologia.”

10/02/12
por Luciano Trigo

Nenhum comentário:

Postar um comentário