"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 16 de março de 2012

EDITORIAL DO JORNAL DO BRASIL

O mito da boa causa: a lógica do mensalão e a ameaça à democracia
16/03/2012

O povo brasileiro mistura ingredientes paradoxais: malícia para a vida quotidiana e desconcertante ingenuidade política. Mas não é preciso ser gênio para perceber que se a sociedade não se mobilizar – como fez recentemente em outras votações – terá que engolir uma grande armação. Percebe-se forte movimentação nos bastidores do julgamento do mensalão, o processo político-institucional mais documentado da história republicana. Com muito custo, advogados dos réus tentam limpar o rastro de sujeira que seus clientes deixaram enquanto se arranjavam para conquistar, manter e ampliar o poder no início da era Lula.

Menos previsível que o ato do poder ávido e corruptor é a lógica que o inspirou. E ainda inspira! O óbvio merece ser relembrado: um dos pilares axiológicos da democracia é a moderação/controle que o Poder Legislativo deveria exercer sobre os demais. O mensalão – que prossegue com réus em julgamento, malgrado impunes – foi apenas um plano desmascarado como crime eleitoral. O gravíssimo é que prossiga incólume, ainda que com outras características.

Comprar apoio de deputados para governar, usando supersalários ou acordos secretos que fomentam o clientelismo é ameaça séria ao Estado democrático. Nostálgicos do poder absoluto, essa turma quis ressuscitar a versão tropical do centralismo partidário, vale dizer, modelar a máscara para uma neoditadura. Incrível, mas até aqui a lógica tem sido bem sucedida. Flagrados no crime eleitoral, se sustentaram com malabarismos e composições curiosas para o partido que monopolizou o slogan Ética na política. Terminaram na mesma vala comum da maioria dos moralistas: ética para os demais!

Hoje, nós os gatos escaldados, enxergamos que o telhado de vidro existe e é coletivo. Nesse caso especifico do mensalão a justiça do país tem uma dívida especial com os cidadãos, que vai muito além do sistema de penalidades que o sistema jurídico costuma aplicar para dar consistência ao estado de direito. O que está em disputa é a manutenção ou interrupção do aval para jogo perigoso dentro da área.

Quem detém poder sempre pode mudar as regras do jogo, e a sociedade que se ajoelhe diante das arbitrariedades. Mas não lutamos justamente contra o arbítrio que cassou a voz da sociedade e o Brasil durante décadas? Se houver condescendência com o “mito da boa causa”, a próxima vítima será a democracia.

Convencido pelo apoio popular à estabilidade econômica, o regime aspira hegemonia e flerta com o totalitarismo. Vale dizer, a tese que os inspira não é só contar com a prescrição da pena.
Sabem que sob a abundância de provas documentais e testemunhais existentes isso seria escarnecer da sociedade. A tática agora é convencer a opinião pública de que os críticos da atual administração são conspiradores e “de direita” – como se não fosse plausível uma oposição à esquerda e fora das hostes ressentidas.

Melhor seria se réus e patrocinadores se comportassem como o mestre de Platão. Sócrates não só aceitou a pena como recusou-se a fugir ou ser ajudado por sofistas. Para o sábio – detalhe vital, ele era inocente – enfrentar o julgamento dignificava a democracia grega.
E ainda que considerasse injustas as acusações explicadas pelas motivações pessoais dos adversários – submeteu-se aos resultados e enfrentou seu destino.

Não basta sucesso econômico, distribuição de renda, e superação dos bolsões de miséria. Há uma fome por justiça. Cresce no país a oposição sem partido, crítica, mas ainda silenciosa. A nova resistência enxerga que para sairmos todos juntos da caverna os homens públicos precisam assumir mais responsabilidades e a sociedade recusar o vale-tudo.

Que sociedade não se arrepiaria com o seguinte anúncio coletivo:
– Assumimos a culpa e renunciamos aos cargos e mandatos. Não nos interessa mais a permanência no poder. A única prioridade é a preservação da democracia e bem-estar das pessoas!

Conforme explicado acima: somos todos ingênuos. Ainda bem!

Paulo Rosenbaum, médico e escritor. é autor do livro 'A verdade lançada ao solo' (ed. Record).

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