"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 6 de março de 2012

PUTIN E A INTERNET: HISTÓRIA DE AMOR E HUMOR

Ou como a web cultura se apropriou ironicamente da sua imagem de 'machão' e construiu um espaço virtual de contestação.
“Putin não é um fã da vida digital. Ele prefere a vida real”, explicou recentemente seu porta-voz, Dmitri Peskov. De fato, o primeiro-ministro russo, que deverá ganhar neste domingo, 4, seu terceiro mandato como presidente da Rússia, não usa celulares e jura nunca ter mandado um e-mail. Paradoxalmente, poucos líderes mundiais se encontram, hoje, tão presentes na internet. O líder máximo da Mãe Rússia virou uma espécie de ícone da cultura web, maior até do que outras figurinhas folclóricas da rede, como Hitler e Kim Jong-il. Cartoons, vídeos, montagens, verbetes satíricos na Enciclopédia Dramática (uma paródia da Wikipedia) se reapropriaram da imagem que Putin fabricou, distorcendo, com o humor absurdo próprio da internet, a sua pose de badass macho alfa.

Putin é um caso emblemático de propaganda de Estado: da mesma forma como trabalhou meticulosamente sua imagem pública moldando um sistema de culto à personalidade, também se esforçou para esconder sua vida privada, apagando vestígios sobre passado e família (há rumores de que, perto das últimas eleições, chegou a esconder sua esposa em um monastério). Dessa forma, cria uma aliança irresistível entre saturação e lacuna, impondo-se no imaginário coletivo como uma figura ao mesmo tempo onipresente e misteriosa.

Putin, herói nas tirinhas (http://vladimirputinactioncomics.com/)

Durão e polivalente, o ex-espião da KGB caça sem camisa, dirige carros de corrida, mergulha no mar em buscas arqueológicas, toca piano, canta como crooner em programas de auditório… Não há nada que Super Putin não possa fazer, e as imagens extremamente caricatas e histriônicas que deixou pelo caminho nos últimos anos fazem a alegria dos geeks. Na era do compartilhamento virtual e dos threads (tópicos de discussão em fóruns como Reddit), o poder das imagens digitais é uma faca de dois gumes: Putin é o que ele posta, mas também o que postam sobre ele. Ao cair nas mãos do público “errado” – mais precisamente, da juventude esperta e ultra-conectada – o culto à personalidade acaba assumindo um ar jocoso, uma ironia hipster.

Um dos faróis do humor na cyber cultura são as image macros (fotos superpostas com alguma frase ou texto de efeito cômico), estética que combina maravilhosamente com as centenas de clichês produzidos pelas aparições de Putin. Nenhum outro político teve a honra de ganhar uma categoria só para si no Pundit Kitchen, um site colaborativo de piadas políticas, onde sua “macheza” é celebrada ironicamente.
Não por acaso, a categoria é conhecida como Vladurday, ou seja, uma referência ao Caturday – dia em que os usuários do 4chan (site de compartilhamento de imagens) trocam fotos humorísticas de felinos, o animal mais icônico da internet. Nenhum absurdo dizer, aliás, que se não existissem gatos e Putin, a cultura web perderia pelo menos 60 por cento de suas piadas.

O hilário perfil de Putin na Enciclopédia Dramática traz uma seleção de image macros dedicadas às “façanhas” físicas e intelectuais do estadista.

Mas não são apenas as imagens fixas que alimentam o culto ao líder supremo. Uma video-montagem recente colocou Putin atrás das grades, respondendo por crimes contra abuso de poder. Em três dias, dois milhões de pessoas já haviam visto o intox no Youtube. Quando o buzz ultrapassa os fatos, publique-se o buzz:



O vídeo é um exemplo do papel que cumpre a internet na Rússia contemporânea. Conduzindo com mão de ferro a política do Estado, perseguindo e condenando opositores, Putin relaxa nas fronteiras da esfera virtual. Apesar de ter colocado em prática uma pouco atuante cyber-polícia, o ex-espião da KGB sabe que a internet é incontrolável. Muito mais realista do que tentar reprimi-la, é usá-la ao seu favor.

Portanto, ao mesmo tempo que a web serve para promover a versão oficial do poder, ela também se consolida, para seus 51 milhões de usuários no país, como um espaço inédito de contestação. “Existe uma liberdade quase total (na internet), menos em assuntos tabus como a Chechênia”, disse em entrevista ao jornal francês Libération o pesquisador Julien Nocetti, autor de um livro sobre as relações entre a internet e a política russa. “Putin e Medvedev são abertamente criticados em blogs e no Twitter”.

É na web que floresce e se reúne a rebeldia russa, formada em boa parte pela nova classe média do país, cansada com as denúncias de corrupção e promessas não cumpridas. Alexei Navalny, um ambicioso advogado de 35 anos, encontrou na blogosfera uma possibilidade de denunciar esquemas de corrupção do alto escalão, e prometeu 10 mil dólares para quem oferecesse o vídeo mais degradante com Putin. Virou herói nacional (reza a lenda que, como um único clique, seria capaz de reunir 100 mil manifestantes).

Da mesma forma, garage bands semi-amadoras se transformam em celebridades da noite para o dia postando músicas de contestação no Youtube (um milhão de espectadores para uma banda de ex-soldados raivosos e mais inúmeros fãs para as feministas punks Pussy Riots) e jovens engajados usam as redes sociais para organizar e divulgar atos de protesto.

Nocetti chega a falar em “democracia desmaterializada”: um sistema de governo político baseado em ferramentas digitais (crowdsourcing, etc). “Mas isto ainda continua bastante embrionário”, precisa o pesquisador francês.

Vale lembrar que o apogeu da reapropriação do discurso governamental se deu dentro do próprio site oficial de Putin. Querendo se mostrar mais democrata do que é, o líder russo abriu um espaço interativo. Os descontentes usaram a nova ferramenta para enviar mensagens de desagravo, exigindo a saída do primeiro-ministro. Nada menos do que quarenta por cento das mensagens eram desfavoráveis a Putin. Foram devidamente suprimidas, claro, mas os screen shots não demoraram para parar no Live Journal e virar piada nas redes sociais mundo afora.
Talvez esteja na hora do mestre máximo da Mãe Rússia rever os seus conceitos: tanto na vida real quanto na vida digital, sua imagem está sempre a um passo do duplo sentido.

Bolívar Torres é jornalista e escritor
06 de março de 2012
Fontes:Libération - Le Web russe, «soupape d'évacuation»

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