"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 20 de julho de 2012

GENTILEZA EM FAMÍLIA



 
Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade

por JONAH LEHRER
O morcego-vampiro surge da caverna na hora mais escura da noite, depois que a lua se põe. Voa baixo, percorrendo toda a área, seguindo rastrosde cheiro e usando seu sonar. Quando encontra uma vítima – ele se alimenta da maioria dos animais de sangue quente, de passarinhos até cavalos e vacas –, começa a perseguição. Aterrissa em silêncio a 1 ou 2 metros da presa e, em seguida, avança em direção ao som de uma veia pulsante. Dois dentes, mais afiados que um bisturi, cortam a carne. O sangue escorre do ferimento; o morcego o lambe. Às vezes ele chega a consumir o equivalente a seu próprio peso em sangue durante uma única noite.

Embora o morcego-vampiro costume ser visto como um predador sanguinário, ele interessa aos biólogos por outra razão: é um animal profundamente altruísta. Essa espécie vive em enormes colônias, com centenas ou milhares de indivíduos dividindo a mesma caverna escura. Os morcegos precisam se alimentar constantemente – eles morrem de fome se ficarem sessenta horas sem comer –, o que os levou a desenvolver uma maneira inusitada de compartilhar o alimento.
Se um morcego não consegue encontrar uma vítima durante a noite, ele começa a lamber debaixo das asas e dos lábios de algum outro membro da colônia. Os dois animais então unem as bocas e o caçador bem-sucedido começa a vomitar sangue quente na garganta de seu companheiro. Sem essa partilha de alimento, cientistas estimam que mais de 80% dos morcegos-vampiros adultos morreriam de fome todos os anos.

Charles Darwin considerava o problema do altruísmo – o ato de ajudar alguém, mesmo a um alto custo pessoal – como um desafio potencialmente fatal para sua teoria da seleção natural. Se a vida fosse uma cruel “luta pela existência”, como um indivíduo altruísta poderia viver o tempo suficiente para se reproduzir? Por que a seleção natural iria favorecer um comportamento que reduz nossas chances de sobreviver? Em A Origem do Homem, Darwin escreveu: “Os indivíduos que preferiam se sacrificar a trair seus companheiros – como muitos selvagens faziam – frequentemente não deixavam descendentes que pudessem herdar sua natureza nobre.” E, no entanto, como Darwin sabia, o altruísmo está por toda parte – uma teimosa anomalia da natureza. Os morcegos alimentam seus companheiros famintos; as abelhas cometem suicídio dando ferroadas para defender a colmeia; os pássaros criam filhotes que não são seus; o ser humano pula nos trilhos do metrô para salvar gente estranha. A onipresença desses comportamentos sugere que a bondade não é uma estratégia derrotista para a vida.

m século depois de Darwin, o altruísmo continuava sendo um paradoxo. O primeiro vislumbre de solução surgiu certa noite em um bar do bairro londrino de Bloomsbury, nos anos 50. Diz a lenda que o biólogo J. B. S. Haldane já havia entornado várias canecas nesse pub quando lhe perguntaram até onde ele iria para salvar a vida de outra pessoa. Haldane pensou um momento e começou a rabiscar números em um guardanapo. “Pularia em um rio para salvar dois de meus irmãos, mas se fosse um só eu não pularia”, disse Haldane. “Ou então para salvar oito primos, mas não sete.”

A resposta do cientista embriagado resumia uma poderosa ideia científica.
Como os indivíduos compartilham grande parte de seu genoma com parentes próximos, a sobrevivência de suas características genéticas também está atrelada à sobrevivência de seus familiares. Segundo a aritmética moral de Haldane, fazer um sacrifício por um membro da família é apenas mais uma maneira de promover nosso próprio DNA.

Haldane nunca detalhou seus cálculos de guardanapo em uma teoria matemática formal. Essa tarefa coube a William Hamilton, aluno de pós-gradua-ção da University College London. Ele batalhou durante anos por esse projeto. Muitas vezes, ficava até tarde da noite trabalhando em um banco da estação de Waterloo, onde a multidão chegando e partindo abrandava sua solidão. Em 1964, apresentou dois artigos ao Journal of Theoretical Biology.

Os artigos se baseavam em uma equação muito simples: rB > C. Ou seja, os genes do altruísmo podiam evoluir se o benefício (B) de uma ação excedesse o custo (C) para o indivíduo, levando-se em conta o grau de parentesco (r). A equação confirmava a verdade por trás da brincadeira de Haldane: uma vez que o parentesco entrasse nos cálculos, o altruísmo podia ser facilmente explicado em termos genéticos.
Hamilton chamou seu modelo de “teoria da aptidão inclusiva”, pois ampliava a definição darwinista de “aptidão” – ou seja, quantos filhos um indivíduo consegue ter, passando a incluir os filhos dos parentes vivos. Esse cálculo parecia resolver o problema biológico, mas, ao fazer isso, introduzia um problema moral: segundo a equação, o altruísmo não seria fruto de uma bondade, e sim apenas mais uma maneira de disseminarmos nossos genes. Em vez de fazer sexo, salvamos parentes.

No início, as ideias de Hamilton sobre aptidão inclusiva foram totalmente ignoradas. Muitos biólogos a rejeitaram devido ao componente matemático e poucos matemáticos se interessavam pelos problemas da biologia. No ano seguinte, porém, um ambicioso entomologista chamado Edward Osborne Wilson leu o artigo, durante uma viagem de trem de dezoito horas entre Boston e Miami.

“Como eu não tinha nada para fazer, tratei de botar em dia toda a minha leitura atrasada”, disse-me Wilson recentemente, quando fui visitá-lo em seu escritório em Harvard. “Quando comecei a ler o artigo de Hamilton, minha primeira reação foi achar a equação pequena demais. Pensei: não é possível que isso seja tão fácil. Mas depois reli o artigo. E reli mais uma vez. E foi aí que fiquei com inveja.” Wilson queria compreender como o altruísmo funcionava dentro das colônias de formigas, e se convenceu de que Hamilton havia resolvido o problema. Para promover a causa da aptidão inclusiva, Wilson debateu a ideia em uma série de artigos e livros influentes, apresentando aos biólogos a lógica surpreendente da equação de Hamilton. “Tornei-me um divulgador dessa ideia”, diz Wilson. “E não era uma ideia fácil de vender. Ninguém queria acreditar que uma única equação fosse capaz de explicar o altruísmo. Ao final, as pes-soas viram que nós tínhamos razão. Venci essa disputa de lavada.”

o fim da década de 70, o trabalho de Hamilton já aparecia com destaque em livros didáticos e seus artigos estavam entre os mais citados da biologia evolutiva. A equação permitia que os naturalistas entendessem a lógica do comportamento animal com base em modelos genéticos, o que dava um novo rigor a esse campo. “Antes de Hamilton, havia explicações diferentes para cada espécie”, diz Wilson. “Não havia nenhuma teoria geral, nenhuma forma de conectar aquilo que víamos em campo com o que estávamos aprendendo no laboratório sobre os genes e a cooperação.

Hamilton ajudou a resolver os dois problemas.” Na verdade, a teoria da aptidão inclusiva resolvia esses problemas tão bem que logo foi aplicada a características biológicas sem relação nenhuma com o altruísmo, como o homossexualismo, a violência tribal ou os chamados de alarme. Em um obituário publicado após a morte de Hamilton, em 2000, Richard Dawkins, famoso biólogo de Oxford, chamou Hamilton de “o mais eminente darwinista desde Darwin”.

Agora, porém, em uma abrupta reviravolta intelectual, Wilson diz que cometeu um grave erro científico ao adotar a equação de Hamilton. “Vou dizer sem meias palavras: a equação não funciona”, diz ele. “É uma medida fantasma. Ela não explica tudo isso que as pessoas pensam que ela explica, nem de longe. Na época em que li Hamilton pela primeira vez, a aptidão inclusiva parecia explicar muitos mistérios diferentes. Agora já sabemos mais coisas e não tenho medo de reconhecer que eu estava errado.”
A apostasia de Wilson, que desencadeou um verdadeiro furor científico, foi explicada com mais detalhes em seu livro recém-lançado nos Estados Unidos, The Social Conquest of Earth [A Conquista Social da Terra]. A grande maioria de seus colegas acadêmicos está convencida de que ele estava certo antes, não agora, e que sua retratação prejudicou a área. Houve denúncias na imprensa e cartas coletivas assinadas em publicações de prestígio; alguns sugeriram que Wilson, que está com 83 anos, deveria se aposentar. A polêmica é alimentada por um debate mais amplo sobre a evolução do altruísmo. Será possível existir o altruísmo verdadeiro? Será que a generosidade é um traço sustentável? Ou serão os seres vivos inerentemente egoístas, criaturas que apenas usam máscaras de bondade? O que está sendo discutido é ciência com conse-quências existenciais em jogo.

saúva, ou formiga-cortadeira, é a melhor cultivadora de cogumelos do mundo. Abundante nas florestas tropicais do Novo Mundo, essas formigas de cor vermelho-escura vivem em vastos formigueiros subterrâneos. As operárias se organizam em sete funções, como numa linha de montagem. Algumas formigas não fazem mais nada além de cortar folhas, coletando até 17% da produção anual das folhas de uma floresta tropical. Outras carregam os pedaços das folhas para o formigueiro, enquanto outras, ainda, os cortam em pedacinhos bem pequenos. Mas as formigas não podem simplesmente comer essas folhas, visto que contêm substâncias químicas tóxicas. Em vez disso, precisam decompô-las em um fungo que só cresce dentro de suas colônias. Um grupo de formigas cuida dessas plantações subterrâneas de cogumelos, arrancando outros fungos rivais e mantendo as câmaras no nível ideal de temperatura e umidade. É dessa forma que as formigas-cortadeiras administram suas fazendas monocultoras há dezenas de milhões de anos.

E. O. Wilson dedicou sua carreira às formigas. Como ele observa, esses pequenos seres talvez sejam a mais bem-sucedida forma de vida multicelular da história do planeta, com cerca de 14 mil espécies conhecidas. Elas compõem aproximadamente a mesma quantidade de biomassa que os seres humanos. Esse sucesso biológico é especialmente notável porque depende inteiramente de sua capacidade de cooperação, de formar sociedades complexas estruturadas em torno do trabalho duro e do sacrifício comum. Como disse o rei Salomão nos Provérbios: “Observe a formiga, preguiçoso! Reflita sobre os caminhos dela e seja sábio!”

á sessenta anos Wilson estuda insetos na Universidade Harvard. Sua sala, no Museu de Zoologia Comparada, fica num corredor escuro, cheio de arquivos e gaveteiros metálicos. A sala é colada ao museu, o que significa que os gritinhos das crianças que visitam o local em passeios escolares ressoam pelo ar. “Não me incomodo com esse barulho”, diz Wilson. “É como o gorjeio dos pássaros.” Seu cabelo grisalho é cortado rente e, como o cabelo de um garotinho, tem muitos fios rebeldes que se recusam a ficar no lugar.
Nascido em Birmingham, no Alabama, ele teve seu sotaque sulista suavizado por décadas de vivência nos arredores de Boston. Hoje, os traços mais característicos de sua pronúncia são um leve cicio e as longas pausas de um homem acostumado a ser ouvido. As estantes do escritório abrigam, sobretudo, seus próprios livros – ele já publicou 24, dois deles vencedores do prêmio Pulitzer –, além de vo-lumosas obras de referência sobre insetos.

A descoberta que fez a reputação de Wilson ocorreu em 1959, quando ele era um jovem professor em Harvard. Ele estava tentando entender de que modo uma colônia de formigas-de-fogo, ou lava-pés, coordenava seu funcionamento. O biólogo notou que, sempre que uma formiga encontrava algum alimento grande demais para ser carregado, ela voltava para o formigueiro arrastando o abdômen pelo chão. Por causa disso, Wilson presumiu que os insetos estavam deixando uma trilha de odor. Não demorou muito e lá estava ele dissecando dezenas de barriguinhas de formigas, procurando a origem da substância química. Era um trabalho enlouquecedor: como os órgãos das formigas são microscópicos, Wilson tinha que usar agulhas de costura e pinças de relojoeiro, extraindo cuidadosamente cada glândula das criaturas. “Eu queria roubar a substância sinalizadora das formigas e usá-la para falar, eu mesmo, por meio dela”, diz Wilson. Mas nada dava certo.

Wilson já estava esgotando os órgãos. Numa de suas últimas tentativas, retirou a glândula de Dufour, uma estrutura minúscula perto do ferrão da formiga, sobre a qual pouco se sabia. Usou então essa glândula para traçar uma trilha. “A resposta foi explosiva”, diz Wilson – e até hoje sua voz se acelera com a empolgação. “A colônia inteira veio correndo atrás de mim!” Wilson, ao lado de outros pesquisadores, começou a identificar os compostos específicos secretados pela glândula. Como cada formiga continha menos de um milionésimo de grama de ferormônios, ele teve que recolher dezenas de milhares de formigas, jogando colônias inteiras em um riacho e pescando os insetos quando subiam à tona. O trabalho de campo não era nada divertido – Wilson foi picado dezenas de vezes –, mas lhe permitiu identificar o idioma das formigas-de-fogo, um vocabulário de líquidos voláteis que consiste em vinte sinais de comunicação.

A requintada lógica desse sistema o convenceu de que o comportamento biológico poderia ser compreendido e que até algo tão complexo quanto uma colônia de insetos poderia ser explicado em termos químicos e por leis. “Fui convencido pelas formigas de que a biologia precisava desenvolver uma teoria do comportamento social”, diz ele. “Uma teoria assim era inevitável. Tinha que existir. E foi por isso que fiquei tão animado com os artigos de Hamilton.”

Hamilton mostrou que a natureza cooperativa de muitas sociedades de insetos poderia ser explicada por uma peculiaridade genética conhecida como haplodiploidia. Em algumas espécies de insetos, as fêmeas são produzidas a partir de um ovo fertilizado, enquanto os machos se desenvolvem a partir de ovos não fertilizados. Uma das consequências desse esquema bizarro é que os machos têm a metade dos cromossomos das fêmeas. Eles também têm avô, mas não têm pai.
Levando-se em conta a haplodiploidia, a solidariedade extrema entre irmãs observada em colônias como a das saúvas deixava de ser um mistério. Normalmente, irmãos compartilham 50% dos genes, mas as formigas operárias fêmeas compartilham três quartos – todos os genes do pai e metade dos genes da mãe.

E, um dado crucial: as formigas mantêm relações mais próximas com suas irmãs do que com suas próprias proles. Para Hamilton, as operárias estão dispostas a cuidar da rainha porque ela é, basicamente, uma máquina de fabricar irmãs. Seu serviço aparentemente desinteressado é pura ganância genética.

As formigas não são os únicos insetos que dependem das haplodiploidia. Como notou Hamilton, a mesma lógica poderia explicar a evolução das abelhas, vespas e vespões. Todos esses insetos apresentam uma forma extrema de altruísmo conhecida como eussociabilidade, em que os indivíduos vivem juntos em grandes sociedades cooperativas. Embora a eussociabilidade seja uma adaptação relativamente rara, é incrivelmente bem-sucedida: apenas 2% das espécies de insetos são eussociais, mas respondem por cerca de 80% de toda a biomassa de insetos do planeta.
O fato de que a equação de Hamilton pudesse se aplicar a várias formas de vida sugeria que se tratava de um princípio geral do comportamento social, e que muitos dos exemplos mais importantes de cooperação biológica não passavam de subprodutos do parentesco genético.

Wilson ficou fascinado pela hipótese da haplodiploidia e fez da aptidão inclusiva uma parte importante de seu livro Sociobiology: The New Synthesis [Sociobiologia: a Nova Síntese], de 1975, que explorava o papel da evolução na formação do comportamento social. No capítulo final, tentou aplicar esses mesmos princípios biológicos aos seres humanos, se esforçando para “enxergar o homem pelas lentes imparciais da história natural, como se fôssemos zoólogos vindos de outro planeta”. No fim das contas, por que o Homo sapiens deveria estar isento da lógica egoísta dos genes e do parentesco? A equação era uma verdade universal.

O livro provocou bastante controvérsia. Wilson foi atacado por cientistas eminentes, muitos deles vindos de seu próprio departamento em Harvard. Uma carta coletiva publicada na New York Review of Books afirmava que o conceito de sociobiologia oferecia “uma justificação genética do status quo e dos privilégios de determinados grupos, segundo critérios de classe, raça ou sexo”. Wilson manteve a serenidade. “Eu sabia que tinha razão quanto à parte científica”, diz ele – e agora a aplicação da teoria da evolução aos seres humanos já não é controversa.
A ideia de Wilson gerou um volume colossal de pesquisas científicas, inspirando décadas de investigação sobre genética comportamental, neurociência e psicologia evolutiva. O professor mal consegue disfarçar seu orgulho: “Essa foi outra discussão que eu ganhei”, diz ele. “Demorou alguns anos, mas eu venci, venci de longe.”

Apesar do sucesso, enquanto fazia campanha pela sociobiologia, Wilson começou a ficar desiludido com a estrutura científica que a tornava possível. “Percebi que os fundamentos da aptidão inclusiva iam desmoronando”, diz ele. “O raciocínio que tinha me convencido de que ela era correta não se sustentava mais.” Depois de investigar a hipótese de Hamilton sobre a haplodiploidia, os cientistas descobriram, por exemplo, que muitas espécies de insetos mais coo-perativas, tais como os cupins e os besouros-de-ambrosia, não eram realmente haplodiploides.

Além disso, dezenas de milhares de espécies que manifestavam haplodiploidia nunca desenvolveram a eussociabilidade – isto é, embora esses insetos fossem intimamente aparentados, eles não compartilhavam o alimento nem serviam à rainha. No fim dos anos 90, a relação entre haplodiploidia e eussociabilidade já não era estatisticamente significativa.

“O que aconteceu é que, muito discretamente,os teóricos da aptidão inclusiva pararam de falar sobre a haplodiploidia, embora ela fosse a melhor evidência de que eles dispunham”, diz Wilson.No começo, ele guardou seu ceticismo para si. Tinha pouco interesse em desmontar uma teoria que havia convencido tantos outros a aceitar. Mas, depois de pesquisar a literatura em detalhes enquanto escrevia um livro didático sobre as formigas, acabou concluindo que a aptidão inclusiva era simplesmente um conceito insustentável. “As falhas começaram a pesar na minha consciência”, diz ele. “Olhei para aquilo tudo e fiquei bem surpreso com a estagnação em que a área se encontrava. Eu não podia continuar negando que talvez nosso campo de pesquisa tivesse enveredado pelo caminho errado.” Foi nesse momento que Wilson tomou conhecimento do trabalho de Martin Nowak, um matemático, alguém alheio a seu campo de trabalho que havia chegado a uma conclusãosemelhante.

s machos jovens do tagarela australiano (Pomatostomus temporalis), pequeno pássaro florestal com o bico preto e curvado, sempre espantaram os biólogos. Em vez de agir como outros jovens, transbordantes de sexualidade, caçando fêmeas e arrumando brigas territoriais, eles se contentam em ficar em casa, no ninho dos pais. E, o mais estranho: passam boa parte do tempo ajudando a criar os irmãos mais novos, chocando os ovos e buscando alimentos para toda a família. Esse comportamento, conhecido como criação cooperativa, faz pouco sentido em termos darwinistas.

Por que os jovens machos desperdiçariam seus anos mais férteis presos ao ninho em vez de competir para se reproduzir? Foi só com o surgimento da teoria da aptidão inclusiva que os biólogos puderam explicar esse comportamento altruísta. Em 1976, em um dos primeiros testes experimentais da hipótese de Hamilton, os pesquisadores Jerry e Esther Brown começaram a manipular o número de ajudantes nos ninhos desse pássaro. Quando eles retiravam os machos ajudantes, o índice de sobrevivência dos irmãos mais jovens despencava. De fato, o casal de pesquisadores descobriu que cada ajudante garantia a sobrevivência de 1,6 filhote a mais – um benefício que compensava a sua própria perda reprodutiva.

Eram histórias como essa – relatos vívidos sobre o comportamento animal, envoltos por equações simples – que despertaram o interesse de Martin Nowak pela biologia, enquanto cursava a Universidade de Viena, nos anos 80. Mas ele não queria ser naturalista – a observação da natureza lhe parecia muito ineficiente. Em vez disso, Nowak queria compreender os detalhes da vida através de modelos matemáticos subjacentes.
Hoje com 46 anos, Nowak tem uma careca lustrosa e grossas sobrancelhas negras. Fala com um sotaque austríaco tão perfeito que parece estar fazendo uma imitação de brincadeira. Suas frases densas ganham leveza graças à cadência de sua voz. Nowak é considerado um dos principais biomatemáticos do mundo, com mais de quarenta artigos publicados na revista Nature e quinze na Science. Em 2003, tornou-se diretor do Programa de Dinâmica Evolucionista, um centro de estudos em Harvard voltado para teóricos que trabalham com problemas biológicos.

O interesse de Nowak pela teoria da aptidão inclusiva começou no início dos anos 90, quando fazia pós-graduação em Oxford e ouviu uma observação casual de seu orientador, o biólogo Robert May. “Ele se referiu à aptidão inclusiva como um culto, e não como uma ciência”, recorda Nowak. “Achei interessante, mas na verdade não entendi o que ele quis dizer.” Apenas em 2006, mais de dez anos depois, foi que ele começou a examinar atentamente a equação de Hamilton. E logo ficou frustrado com sua imprecisão. “Todo mundo falava nessa regra, mas de maneiras muito vagas”, disse ele.

“Parecia uma espécie de matemática de faz de conta.” Na época, Nowak estava muito absorvido em outros projetos e não deu sequência à investigação dos motivos de seu ceticismo. Mas foi então que, em outubro de 2007, recebeu um e-mail de uma jovem matemática de Harvard chamada Corina Tarnita, solicitando uma reunião.

arnita, que cresceu em uma fazenda na Romênia, era um prodígio da matemática – na graduação, ganhara todos os prêmios importantes do Departamento de Matemática de Harvard. No meio da pós-graduação, no entanto, ela se desencantou com sua pesquisa, que focava um ramo hermético da geometria algébrica. “Umas cinco pessoas no mundo se interessavam pelo meu trabalho”, diz ela. Então Tarnita disse a seu orientador que precisava de um tempo. Imediatamente, começou a folhear os livros de matemática da biblioteca, procurando algum assunto que pudesse lhe interessar.
Foi quando descobriu um livro didático que Nowak havia escrito sobre a matemática da evolução. “Abri o livro e percebi que essa matemática não era tão abstrata”, disse-me ela. “Ali estava uma matemática da vida.” Na época em que mandou o e-mail para Nowak, Tarnita enfrentava um dilema. Tinha acabado de receber uma oferta de emprego de um grande fundo de investimentos, para um cargo muito bem pago como analista. Sentiu-se tentada pelo dinheiro. “Gosto de roupas bonitas e carros velozes”, diz ela. “Prometi a mim mesma que, se Martin não respondesse ao meu e-mail, eu sairia de Harvard.”

Felizmente, Nowak respondeu e logo convidou Tarnita para participar de seu grupo de trabalho. Uma de suas primeiras tarefas foi entender a aptidão inclusiva. Ela passou um ano lendo artigos e se debruçando sobre centenas de estudos referentes à aplicação da equação de Hamilton. “Eu queria descobrir como ela era utilizada pelos biólogos na prática”, diz Tarnita. “E o que eu descobri é que ninguém realmente usava a equação para fazer cálculos porque ela não era muito útil para isso.”

Na visão de Tarnita, o problema da equação de Hamilton – e do conceito de aptidão inclusiva de modo geral – é que ela tentava analisar cada ação isoladamente, como um ato distinto, com seus custos e benefícios. “Bem, esse é um objetivo admirável”, diz Tarnita. “Mas como se podem calcular, na prática, esses custos e benefícios?” Para exemplificar o desafio, Tarnita imagina uma situação.

“Digamos que seu primo está se afogando e você arrisca a vida para salvá-lo. É uma boa coisa, certo? Você aumentou a sua aptidão inclusiva. Mas o que você não percebe é que o seu primo está competindo com o seu irmão por uma mulher. Ambos amam a mesma pessoa, mas ela escolhe o seu primo. Com isso, o seu irmão não vai se casar, nem vai ter três filhos. Sendo assim, será que era mesmo uma boa ideia salvar a vida do seu primo?”

O argumento de Tarnita é que o apelo da equação de Hamilton não passa de uma fachada. Quando aplicada ao mundo real, a matemática logo se torna extremamente complicada, pois ela tenta abranger consequências posteriores a cada decisão. É por isso que, segundo os testes matemáticos feitos por ela, a aptidão inclusiva só pode ser aplicada em circunstâncias biológicas muito específicas, que quase nunca existem.

Enquanto Tarnita destrinchava os modelos matemáticos, Nowak procurava aliados dentro da biologia. A busca logo o levou a Edward Wilson, que tinha começado a criticar publicamente Hamilton e a aptidão inclusiva, apontando as limitações dos dados sobre insetos e sugerindo hipóteses alternativas. “Na nossa primeira conversa, Wilson me disse ter sempre assumido que a base matemática da aptidão inclusiva devia ser muito forte, porque a base biológica era bastante fraca”, recorda Nowak. “E eu lhe disse o contrário: que sempre acreditei que a base biológica fosse sólida, pois a base matemática era muito obscura.”

s três cientistas começaram a se encontrar toda semana, trocando histórias sobre insetos e sobre a teoria dos jogos. Logo se concentraram no paradoxo que queriam explicar: já que a cooperação é uma estratégia eussocial tão bem-sucedida – as espécies eussociais predominam sobre suas primas egoístas –, então por que é tão rara? Por que outras criaturas não imitam o estilo de vida altruísta das abelhas e das formigas?

Wilson convenceu os matemáticos de que eles precisavam se aprofundar nas especificidades dos seres vivos. “O que aprendi com o fracasso da aptidão inclusiva é que não se pode construir uma teoria feita apenas de ar”, diz Wilson. “Nossas teorias precisam começar com o trabalho de campo, examinando de perto as espécies em questão.”

Essa ênfase no trabalho empírico marcou uma mudança para Wilson. “Sempre tive a ambição de sintetizar”, disse-me ele. “Mas agora já sei o suficiente para conhecer as limitações dessa abordagem.” Hoje em dia, ele considera os livros que fizeram a sua fama – Sociobiology e Da Natureza Humana (1979) – relatos incorretos da evolução, prejudicados pela adesão acrítica à teoria da aptidão inclusiva.

Ele se orgulha mais de um livro didático de 800 páginas que escreveu sobre as Pheidole, o gênero mais abundante de formigas.Em certo ponto da nossa conversa, Wilson foi até a estante, retirou cuidadosamente um enorme e pesado volume, e começou a folhear as páginas e admirar as ilustrações. “Há 624 espécies neste livro, e eu desenhei à mão uma por uma”, disse. “Levei vinte anos. Sei que parece obsessivo, mas é esse o tempo necessário. Se você quer explicar as formigas, precisa conhecer as formigas.”

O profundo conhecimento de Wilson sobre os insetos o levou a propor um novo modelo para explicar a evolução do altruísmo. Sua conclusão é que o altruísmo está enraizado nas contingências da história natural. O motivo pelo qual a eussociabilidade é tão rara, acredita ele, é simplesmente porque exige uma longa série de pré-adaptações – isto é, características que já devem existir antes que outra característica possa evoluir.

A mais importante delas é a formação de um grupo coeso, o que em geral ocorre quando as filhas não deixam o ninho. Se o grupo persistir por um período extenso, os insetos do sexo feminino podem, então, construir um ninho defensável. É a partir daí que as espécies podem começar a desenvolver as adaptações genéticas que permitem eussociabilidade, tais como a alimentação das larvas e a divisão do trabalho. Quando isso acontece, a lógica da seleção natural assume o comando, já que o estilo de vida intensamente altruísta dos insetos permite que eles se reproduzam em ritmo acelerado.

O ponto principal é que o parentesco da colônia de formigas – todos esses parentes trabalhando juntos – é uma consequência da eussociabilidade, e não a causa. As irmãs não se dão bem porque são irmãs. O que ocorre é que os grupos de fêmeas são os que têm mais probabili-dade de desenvolver as pré-adaptações necessárias para a eussociabilidade se concretizar. Elas trabalham juntas porque não podem sair do ninho; elas se tornaram escravas da rainha.

Essa ideia era atraente, mas carecia de provas. Para testar a teoria de Wilson, Nowak e Tarnita desenvolveram um modelo matemático. Fizeram simulações computacionais comparando o desem-penho de rainhas eussociais com o de rainhas solitárias e concluíram que a eussociabilidade aumentava em oito vezes a taxa de natalidade de uma rainha e reduzia em dez vezes sua taxa de mortalidade. Uma vantagem competitiva dessa magnitude poderia explicar por que a eussociabilidade gera tamanho êxito. Por outro lado, o modelo também documenta as barreiras à evolução da eussociabilidade, já que ela normalmente exige um conjunto de mutações incomuns e condições ecológicas muito específicas.

m 2010, Tarnita, Nowak e Wilson publicaram essas ideias na revista Nature, em um artigo de sete páginas intitulado “A evolução da eussociabilidade”. (A base matemática vinha em um suplemento online de 39 páginas, cheio de equações muito complicadas.) Os cientistas sabiam que o artigo poderia ser polêmico, mas acharam que o debate se concentraria em detalhes técnicos do modelo. Em vez disso, a publicação desencadeou uma tempestade de críticas, muitas delas expressas em público. (Esses debates ocorrem regularmente na biologia evolutiva, campo que parece cair em discórdia mais ou menos a cada dez anos.) Andy Gardner, biólogo evolucionista da Universidade de Oxford, disse ao New York Times que era “um artigo realmente péssimo”. Jerry Coyne, biólogo da Universidade de Chicago, escreveu em seu blog que “a única razão pela qual esse artigo foi publicado é que dois dos autores são grandes nomes, Nowak e Wilson, oriundos da Mãe Harvard. [...] Conclusão: se você é um biólogo famoso, pode publicar bobagem impunemente”.

As críticas feitas em particular foram ainda mais pesadas. Robert Trivers, eminente biólogo da Universidade Rutgers e ex-colaborador de Wilson, escreveu um e-mail pessoal e raivoso para Nowak. A mensagem terminava do seguinte modo: “Martin, você acha mesmo que um artigo rápido e barato como esse vai substituir W. D. Hamilton e a teoria do parentesco? Você acha que alguém realmente especializado nesses assuntos vai engolir esse lixo? Você acha que vale a pena gastar seu tempo com isso? Espero que não.”

Não demorou muito para que um grupo de biólogos elaborasse uma resposta para enviar à Nature. A carta era assinada por 137 cientistas. Afirmava que Wilson e os dois matemáticos não compreendiam bem a teoria da evolução e apresentavam a literatura cientí-fica de forma equivocada. Ficaram aborrecidos, em especial, com a afirmação de que a teoria da aptidão inclusiva teria produzido “parcos” resultados.

Os cientistas citavam uma longa lista de ideiasque decorrem diretamente da equação de Hamilton, como, por exemplo, a explicação do que pode levar os animais a agir de maneira vingativa e por que algumas espécies têm uma proporção tão desigual de indivíduos de cada sexo. “O argumento em favor da aptidão inclusiva é esmagador”, diz Richard Dawkins. “Insistir no contrário é simplesmente um erro.”

Tarnita e Nowak responderam na Nature e depois em seu site, deixando claro que não estavam tentando desacreditar Hamilton nem ignorar a importância do parentesco. Nowak, em uma edição de seu livro SuperCooperators, expressa uma grande vontade de aprender com seus detratores, mas sustenta que a aptidão inclusiva é um “recurso” sem utilidade, caracterizado por uma tendência para “teorizar sem precisão”.

Mesmo assim, o debate ainda não chegou a uma conclusão satisfatória. Os matemáticos insistem que seus críticos não entendem os fundamentos matemáticos, enquanto os biólogos insistem que os matemáticos não compreendem os fundamentos biológicos. Wilson reconhece que não acompanha muito bem o raciocínio matemático dos colegas, mas diz que conhece bem os insetos. Um dos poucos capazes de falar a linguagem de ambos os lados é o cientista que ajudou a coordenar a carta à Nature, David Queller, da Universidade Washington, em Saint Louis, no estado do Missouri.

Ele argumenta que, embora as páginas de equações empregadas por Nowak e Tarnita possam ser tecnicamente corretas, elas não sustentam as conclusões grandiosas desses cientistas. “Martin está sempre dizendo que a aptidão inclusiva não funciona no mundo real”, disse-me Queller. “Mas o modelo dele certamente não é melhor. O fato é que a aptidão inclusiva já foi testada de diversas maneiras. Ela já fez previsões, e essas previsões se revelaram corretas.”

Os matemáticos parecem se arrepender um pouco da linguagem usada no artigo da Nature. “Se eu pudesse escrevê-lo de novo, gostaria de deixar mais claro que a equação de Hamilton inspirou muitas pesquisas boas”, diz Tarnita. “Ele fez as pessoas pensarem na questão do parentesco, e isso foi muito importante.” No entanto, Tamita e Nowak continuam insistindo que a equação de Hamilton não é a expressão exata de um fenômeno biológico. Pelo contrário, é pouco mais do que uma regra prática geral, um truísmo disfarçado de verdade.

Esse desentendimento científico é especialmente difícil de resolver porque está enraizado nas perspectivas distintas dos matemáticos e dos biólogos. Tarnita e Nowak querem que as equações sobre o altruísmo sejam literais; quando falam so-bre a aptidão inclusiva, estão falando sobre os detalhes matemáticos de rB > C. Esses cálculos, é claro, são extremamente difíceis. E é por isso que eles julgam o trabalho de Hamilton tão insatisfatório. “Sei que a equação dele é simples, e isso é bom”, diz Tarnita. “Todo mundo gosta de equações simples. Mas ela é simples demais. Nosso modelo é mais confuso do que o de Hamilton, mas se podem extrair muito mais coisas dele.” Nowak é ainda mais direto. “Se a teoria funciona, então tem que funcionar no nível matemático”, diz ele.

Os biólogos não se importam com o fato de que a aptidão inclusiva muitas vezes não pode ser calculada. Em vez disso, eles a consideram uma estrutura para dar sentido ao mundo, um princípio importante que nos ajuda a compreender o comportamento variado dos morcegos, das formigas e de outras espécies. Em outras palavras, a equação não é realmente uma equação. É apenas um pequeno resumo de uma grande ideia, tal como a descrição de Darwin da seleção natural.

Wilson é o único que parece estar gostando da controvérsia. Seu apetite pelas disputas científicas tem aumentado com a idade. Ele gosta de citar Schopenhauer, quando disse que todas as novas ideias passam por três fases. “Primeiro, a verdade é ridicularizada”, diz ele. “Depois é recebida com indignação. E depois, dizem que ela é óbvia, que sempre foi óbvia. Atualmente estamos na fase da indignação, mas logo seremos óbvios.”

Da mesma forma, Wilson não parece preocupado com a reação de seus colegas. “Quando Einstein publicou sua teoria da relatividade, 100 físicos escreveram um artigo que a condenava”, diz Wilson. “A resposta de Einstein foi maravilhosa. Ele disse: ‘Se a teoria está errada, por que não bastou um só autor?’ Eu sinto o mesmo. Quando lemos a argumentação deles, eles nunca dizem em qual ponto nós erramos. E o motivo é que não erramos em nada. Não quero parecer arrogante, mas acho que esse artigo é muito importante. Ele dá uma virada no jogo.”

E assim o debate continua, com ambos os lados prometendo publicar novos artigos provando que o outro lado está errado. O problema, naturalmente, é que é difícil imaginar como seriam essas provas. Apesar do impressionante conjunto de ferramentas da biologia moderna, esse ainda é um debate sobre uma história longínqua, repleta de fatos ambíguos e princípios básicos contestados. Enquanto isso, parece que ninguém percebeu a ironia da situação: eles estão brigando a respeito da origem da bondade.

á alguns anos, Wilson ficou obcecado pelo pica-pau-de-faces-brancas (Picoides borealis), uma espécie em extinção que habita as florestas de pinheiros do sudeste dos Estados Unidos. Tal como o tagarela australiano, essas aves praticam a criação cooperativa: a maioria dos jovens machos passa vários anos ajudando a criar os filhotes da família. Mas Wilson não ficou fascinado apenas pelo altruísmo das aves. Também ficou maravilhado com outro hábito peculiar desse pica-pau: ele perfura árvores vivas.

Enquanto a maioria dos pica-paus faz o ninho em troncos de árvores mortas, já que a madeira podre é mais fácil de escavar, o pica-pau-de-faces-brancas passa até três anos bicando a madeira saudável de um pinheiro. A tarefa, no entanto, não é tão ingrata quanto parece. Perfurar um pinheiro vivo tem vantagens adicionais. Quando o pica-pau perfura um buraco, a resina escorre para fora, revestindo o tronco da árvore com uma cola grudenta, impedindo que os principais predadores do pica-pau, como as cobras, alcancem o ninho. O pássaro construiu uma armadilha.

Embora não seja exatamente incomum que Wilson mergulhe na história natural de uma determinada espécie, seu interesse por essa ave tem sido excepcionalmente intenso. “Acho incrível que esses pássaros perfurem árvores vivas”, diz ele. “E comecei a me perguntar se isso poderia ter alguma relação com o fato de os jovens machos permanecerem no ninho dos pais.”

Pouco tempo depois, Wilson partiu para o litoral do Golfo do México, para ver os locais de formação de ninhos com seus próprios olhos. Consultou especialistas em pica-paus e passou muitas horas vagando pelas florestas de pinheiros da Flórida, que estão em extinção, procurando troncos com pequenos furos e resina escorrendo, tentando entender qual seria o motivo da criação cooperativa. “Foi aí que percebi que se pode chegar a uma explicação muito melhor do que a aptidão inclusiva”, diz ele. Segundo Wilson, a força motriz é a escassez de locais adequados para a nidificação.

As espécies que praticam a criação cooperativa, observa ele, “sempre têm territórios muito limitados e são muito exigentes quanto ao local onde vivem”. Isso sugere que os jovens machos permanecem no ninho da família porque não conseguem encontrar uma árvore adequada para si mesmos, e têm a esperança de herdar o ninho dos pais. Assim, tomar conta dos irmãos menores é apenas uma maneira de pagar aluguel, uma tarefa realizada em troca de abrigo. “Acho que posso explicar o comportamento desses ajudantes sem falar em parentesco nem aptidão inclusiva”, diz Wilson. “Essas aves estão apenas lidando com a dificuldade de encontrar moradia.”

Nos dias em que acorda mais falante, Wilson vai além dos hábitos dos pica-paus e começa a especular sobre forças mais amplas que atuam na evolução do altruísmo. Ele não se contenta em arrasar com a aptidão inclusiva – quer substituí-la por algo melhor. Como de costume, a mais recente proposta de Wilson é motivada por sua fé no poder da observação cuidadosa, assim como por uma espécie de empatia intuitiva com a fauna, que parece ser produto de toda uma vida observando o mundo natural. Embora ele goste, sem dúvida, de ter o apoio da matemática, tem-se a sensação de que mesmo sem ela não mudaria de ideia. Nessa fase tardia de sua carreira, Wilson está menos interessado em equações do que em narrativas. E de fato, há alguns anos ele publicou um romance – mas um romance sobre formigas.

atual explicação de Wilson para o altruísmo retomou uma hipótese originalmente proposta por Darwin em A Origem do Homem: a generosidade humana pode ter evoluído como uma propriedade emergente não do indivíduo, mas sim do grupo. “Não pode haver dúvida de que uma tribo incluindo muitos membros [...] sempre prontos para ajudar uns aos outros e para se sacrificar pelo bem comum seria vitoriosa sobre a maioria das outras tribos”, escreveu Darwin.

Embora os atos de altruísmo possam custar caro para o indivíduo, Darwin argumentou que eles ajudavam a sustentar a colônia, o que dava aos indivíduos da colônia mais chances de sobreviver.
Essa ideia é conhecida como seleção de grupo, e é uma explicação que a maioria dos biólogos evolutivos agora rejeita, pois as vantagens da generosidade são muito menos tangíveis do que os benefícios do egoísmo. (Uma tribo cheia de sujeitos bonzinhos seria presa fácil de um trapaceiro, o qual logo propagaria seus genes pela população.) Mas Wilson acredita que a ideia pode conter a chave para a compreensão do altruísmo.Como argumento, ele cita estudos recentes de “cooperação” entre micróbios, plantas e até mesmo leoas. Em todos esses estudos, muitos deles rea-lizados em condições controladas de laboratório, os grupos de cooperadores prosperam e se reproduzem, enquanto os grupos egoístas definham e morrem. Em um artigo do qual foi coautor, em 2007, Wilson resume sua nova visão em três frases lapidares: “O egoísmo vence o altruísmo dentro de um grupo. Os grupos altruístas vencem os grupos egoístas. Todo o resto é comentário.”

O argumento mais geral de Wilson é que, na medida em que o altruísmo existe, ele não é uma ilusão. Em vez disso, a bondade pode ser, na verdade, um traço adaptativo, permitindo que os grupos mais cooperativos superem seus primos maldosos. Em um campo definido pela cruel lógica da seleção natural, a seleção de grupo parece ser um raro vislumbre de virtude, a única força biológica que atua contra as vantagens óbvias da ganância e da trapaça. “Vejo a natureza humana como suspensa no equilíbrio entre esses dois extremos”, diz Wilson. “Se o nosso com-portamento fosse totalmente motivado pela seleção de grupo, então nós seríamos cooperadores robóticos, como as formigas. Mas se a seleção no nível individual fosse a única coisa importante, então seríamos totalmente egoístas. O que nos torna humanos é que a nossa história foi moldada por essas duas forças. Estamos presos entre elas.”

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