"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

VELUDO DO PIFE

 

Figura mais singular do que aquela de Veludo não tem: mulato, magrinho, idade indefinida, baixo, olhos vivos e fundos, chapéu-de-palha na cabeça e pés permanentemente descalços.
Tocava pífano e dessa atividade derivava o nome pelo qual é conhecido: Veludo do Pife. Era um mágico com um pífano nos lábios e desse instrumento arrancava os sons e músicas mais encantados que já se teve notícia naquela terra.

Seu pífano era enfeitado com fitas coloridas e, soprando-o, ele comandava monumentais forrós no terreiro de sua casa no Matadouro, bailes populares e novenas organizadas pela mundiça.

De destaque mesmo era o Guerreiro, que ele botava na rua à custa de magras verbas arrancadas dos poderes públicos e dos livros-de-ouro. Era um folguedo de incrível beleza, cheio de cores, fitas e espelhos brilhando nos chapéus dos dançarinos a pular com as espadas na mão. Mágico e encantado espetáculo que fazia reluzir os olhos do povo. Eita Veludo mais alegre e cheio de pantins!

Destaque-se, sobretudo, o seu assovio, que valia por uma banda inteira. Graves e agudos flauteavam nos ares e nem pareciam saídos daqueles lábios murchos de banguela. Era arretado se ouvir os dobrados e marchas que ele executava como a mais competente das filarmônicas. No Quarto Centenário, então, ele se excedia e enfeitava a música com floreios os mais doces e rebuscados. Era de se pegar a melodia no ar e sentir os seus contornos nas pontas dos dedos.

Tirante as festas e os folguedos, Veludo também arrancava o sustento das mil profissões que alardeava possuir. Enumerava cada uma com sua voz arrastada:

- Compro vrido, uma; vendo vrido, duas; conserto guarda-chuva, três; toco pife, quatro; vendo manguzá, cinco; encomendo defunto, seis; toco zabumba, sete…

E ia numa conta sem fim, que nunca chegava a mil, mas era bem possível que ultrapassasse este número, tal a sua arte e engenhos.
De tarde, ele despontava no começo da rua, com o pau arqueado sobre os ombros, em cada ponta uma lata cheia de munguzá quentinho.
- Olha o mango! Maaaaaangoooooo!
E, como brinde para os meninos que enchiam os copos, tinha o “manistrope”: algumas pitadas de canela que temperavam sua doce iguaria.
- Maaaaaangoooooo!

E Veludo se perdia nas curvas e vielas, levando a felicidade do seu munguzá às crianças.
Todo tostão que ele ganhava ia entregando para a mulher, encarregada de guardar e economizar os minguados recursos do casal. Ela colocava as moedas e notas numa lata de Leite Ninho, escondida num recanto da casa que, por medida de segurança, só ela mesmo sabia onde era.

Sucedeu que um dia esta mulher se abufelou e teve um chilique brabo de cair no chão, ficar dura e revirar os olhos. O pior, para Veludo, é que ela resolveu perder a fala e ficou estrebuchando sem soltar um pio. O pobre artista se desesperava, escanchado por sobre a mulher, gritando, enquanto lhe apertava a goela, na vã tentativa de lhe arrancar algum som:

- Fala, sua desgraçada! Besta fera, catraia escrota! Tu não vai morrer sem dizer onde tá o dinheiro, de jeito nenhum…

Afinal, para felicidade e alívio de Veludo, a mulher tornou e contou onde guardava o tesouro: no pau da cumeeira, ao lado de uma casa de cupim. Desse dia em diante, ele chamou a si a responsabilidade da guarda dos tostões, para evitar surpresas futuras.

Recordo-me de uma comitiva do Ginásio Municipal, que foi contratá-lo para tocar num baile que os estudantes organizavam para arrecadar fundos para um excursão no fim do ano. Honrado, ele recebeu os rapazes afavelmente e foi logo tratando do negócio:

- Bom, eu faço dois tipos de bailes: o Nacional e o Patriótico. Pra cada um é um preço.
E, diante da ignorância de todos, ele explicou:
- O Nacional começa às oito da noite e acaba às quatro da manhã; já o Patriótico começa às dez da noite mas não tem horas para acabar.

Mito e mistério incorporado à paisagem da cidade, esse Veludo arteiro e espalhador de alegrias. Repositório de um folclore que está sendo assassinado impiedosamente aos poucos.

* * *
Da ultima vez que estive em Palmares, doeu-me fundo no peito e estragou meu sábado de feira o quadro em que ninguém prestava atenção: Veludo, com a mão direita no ombro da mulher, e a esquerda aberta para o mundo, implorando a caridade pública. Rosto vazio, cego dos olhos, os lábios murchos, sem um só assovio.

Nem me aproximei para puxar conversa. Mandei um menino entregar uma nota na mão dele. Pagamento pouco e tardio pelos muitos munguzás que tomei, os muitos dobrados que ouvi e os muitos Guerreiros que acompanhei.
Deus te ilumine, Veludo!

19 de novembro de 2012
Luiz Berto
(Do livro “A Prisão de São Benedito”, 4ª edição, 1997, Editora Bagaço)

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