"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A FILHA DO TEMPO

 


Ricardo III, cuja ossada acaba de ser descoberta sob um estacionamento em Londres, é o melhor — ou, no caso, o pior — dos vilões de Shakespeare. Nenhum outro tem, como ele, tanta consciência da própria vilania e a exerce com tanto gosto.

O Ricardo III do Shakespeare e da História é um monstro que manda matar seus pequenos sobrinhos para herdar o trono, seduz a viúva de um homem que acaba de matar e comete um sortimento de maldades para se manter no poder — sempre festejando seu próprio mau caráter.

Foi o último rei da Inglaterra a morrer em combate e, segundo Shakespeare, na véspera da batalha em que perderia a vida (pedindo “Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”) é visitado pelos fantasmas de suas vítimas, e ouve de todos a mesma imprecação: “Desespere, e morra!”

Mas Ricardo III pode ter sido injustiçado, pela história e por Shakespeare. Uma escritora escocesa de livros policiais chamada Josephine Tey colocou o herói de várias das suas histórias, o inspetor Alan Grant, da Scotland Yard, numa cama de hospital com uma perna quebrada e sem nada para fazer.

Para combater o tédio, Grant resolve investigar, usando apenas livros e documentos que lhe são fornecidos por um amigo pesquisador, a verdadeira história do suposto tirano.

A conclusão do inspetor e da sua criadora é que Richard III não era nada do que diziam dele. Talvez a sua deformidade física — ele era corcunda, o que foi comprovado pela ossada recém recuperada — tenha contribuído para sua fama de monstro.

Mas não há registro histórico da sua monstruosidade.
Nenhum documento da época menciona as pobres crianças presas na Torre de Londres até o tio desalmado mandar matá-las. E, além de tudo, Grant, contemplando um retrato dele pintado na época, deduz que aquela não é a cara de um assassino. Antes é de um doce de pessoa.

O título do livro de Josephine Tey é “A filha do tempo”.
Vem da frase de autor desconhecido “A verdade é filha do tempo”.
Os fatos que geram a História são alterados pela má memória, pela interpretação conveniente, pela ornamentação fantasiosa, por tudo que vem com o tempo depois do fato.

Com o tempo o mito vira realidade e a realidade vira mito. Mas é só dar mais tempo ao tempo que a verdade aparecerá.

O exame dos ossos de Ricardo III não revelará nada sobre sua personalidade, mas é provável que o novo interesse pela sua figura resulte numa correção da injustiça. O que não seria mais do que a História está lhe devendo.


Batalha de Bosworth, 1485, onde Richard III morreu
 
07 de fevereiro de 2013
Luis Fernando Veríssimo

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