"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

LINCOLN: A CAUSA PERDIDA NÃO VEM SÓ DO SUL


"Lincoln" (2012), de Steven Spielberg, foge do sentimentalismo ao representar com espantosa clareza um personagem histórico que conseguiu assinar a conta de dois momentos decisivos na trajetória norte-americana sem jamais ter entrado para o hall dos "amados e odiados", que marca quase todos os seus colegas no hall dos estadistas mais marcantes da História.

O lançamento do épico spielberiano, poucos recordaram, acontece exatos 98 anos após outro cineasta brilhante, D.W Griffith, ter apresentado em "O Nascimento de uma Nação" (1915) o outro lado da moeda: embora retrate Lincoln com deferência, traz todo o ardor da Lost Cause confederada, presente nos bastidores do Tea Party pós-moderno e pedra fundamental dos conflitos políticos e ideológicos que marcam a relação entre o sul agrícola e o norte industrial dos Estados Unidos até a atualidade.

Spielberg, com sutileza, pinçou dois personagens que não chegaram aos nossos dias como caracteres importantes da psiquê do presidente americano: seu filho mais novo, Thomas, que morreria apenas três anos após o pai e com o qual a relação de afeto e proteção representava, em uma das primeiras ocasiões, a tentativa de forjar Pai da Nação um homem democraticamente eleito – não era um monarca ou déspota – e os conflitos com a esposa Mary, com a qual casaria muito mais velho do que o habitual para os homens de seu tempo e cujo casamento tempestuoso revelaria-se um desastre.

UM HOMEM FRÁGIL

A paz de Thomas "Tad" Lincoln e as trovoadas da mulher comprovam que, muito mais do que o principal ator da Campanha Abolicionista norte-americana e do desenrolar unionista da Guerra de Secessão, Abraham Lincoln foi um homem frágil em seus quase dois metros, confuso em sua sabedoria de almanaque e inseguro com a frágil aliança entre republicanos e democratas pró-abolição que o elegera sem maioria absoluta no voto popular e que, àquela altura, se arrastava nas pelejas entre radicais, moderados, conservadores e diversas outras facções que o apoiavam, ainda que com muitas restrições.

Em contraponto, Griffith, em 15, trazia para o mundo em guerra pela primeira vez a versão sulista da Guerra Civil, onde a escravidão e a abolição eram retiradas do palco e substituídas pela luta a favor de um estilo de vida frugal e contra a intervenção federal nos estados. Ao fim das contas, Griffith produziu uma ode à Ku Klux Klan, guerrilha confederada que renasceu de seu filme e se tornou caso de polícia ao longo dos anos 20, após receber dos EUA a tolerância com que foram tratadas todas as questões da Reconstrução. A Reconstrução, por sinal, que Lincoln planejou mas morreu sem executar, e que ficou a cargo de um controverso Andrew Johnson, vice-presidente que não hesitou em aderir aos democratas sublevados na guerra e receber de braços abertos os outrora revoltosos em altos cargos do governo.

ETERNA CONVULSÃO
Ao fim das contas, o que nem Spielberg, nem Griffith mostraram se manifesta a cada amanhecer na América. As Leis Raciais, defendidas com ardor pelo Partido Democrata por décadas a fio e que só foram suplantadas pelo discurso esquerdista de Jimmy Carter – por sinal, de família confederada – um século após a guerra, permanecem nas entrelinhas de uma vida social em eterna convulsão.

O Partido Republicano, cuja base apoiou Lincoln nos momentos mais nebulosos de seu tempo, teve em Mitt Romney um autêntico defensor da causa perdida sulista, com suas diatribes contra a intervenção do estado americano em questões estaduais, fervor protestante e militarismo.

Obama, de quem os negros libertos pela 13ª emenda eram apenas parentes distantes que atravessaram o oceano em direção ao Novo Mundo, é hoje portador dos sonhos de um partido que antes perseguira e segregara e que agora, travestido em seu liberalismo yuppie, parece muito aquém de curar as fraturas sociais trazidas para a tela pelos dois cineastas geniais. É esta a Lost Cause que saiu dos fotogramas de Griffith e das páginas dos trovadores sulistas para caminhar, 150 anos depois, de mãos dadas com a esperança de uma sociedade igualitária que nunca vem.

07 de fevereiro de 2013
Lucas Alvares

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