"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 10 de março de 2013

ONTEM, DEPOIS DE QUASE UM ANO, VOLTEI AO CREMATÓRIO DO CAJU, PARA ME DESPEDIR DO GRANDE AMIGO, O PINTOR ENRICO BIANCO


Atropelado há tempos na Lagoa, por uma bicicleta em alta velocidade, estou praticamente imobilizado do joelho esquerdo. Três amigos, notáveis traumatologistas, querem me operar, garante:
“Helio, não há o meno perigo”. Acredito neles, quanto à cirurgia. Mas e a recuperação?


Bianco em ação

Na minha idade, quanto tempo levaria a recuperação? Olhando a certidão de idade, acho que tenho menos tempo de espera e de resistência, do que seria necessário. O extraordinário tenista que é Rafael Nadal, com 26 anos, está voltando, com dores e sem confiança, depois de 8 meses parado. Já admite disputar o Grand Slam de Roland Garros (maio) e, de acordo com o resultado, deixar definitivamente a raquete abandonada.

Minha tristeza e meu lamento, ontem, pelo desaparecimento de um extraordinário amigo, mas também pela volta ao crematório. No ano passado estive ali por três vezes, todas elas irrecuperáveis.
Tivemos uma vida inteira de convívio. Bianco foi embora com 94 anos, apenas mais dois do que eu. Normalmente, não chega a ser diferente. E com a amizade de uma vida inteira, tudo era igual. Só ontem, quando o corpo chegou para ser cremado, compreendi que chega um momento em que desaparece a igualdade, sobra apenas a saudade.

Bianco, durante mais de 50 anos, morou numa vila na Humberto de Campos, todos os domingos, jantávamos lá. Como ele era durante um tempo da revista O Cruzeiro, iam quase todos lá, Millôr, David Nasser, Jean Manzon, Nelson Rodrigues, Fernando Lobo, e mais e mais. Sem falar em Caymmi, que não era da revista O Cruzeiro, mas amicíssimo de todos, era presença obrigatória.

Bianco era de formação intelectual, não apenas por ser pintor, mas pela condição de família que teve na Itália nos áureos tempos. Destruídos pela chegada de Mussolini, que era socialista (como tantos), tinha um jornal (“Il Popolo di Roma”), no qual defendia suas idéias, Depois, se submeteu a Hitler, acabou pendurado num varal de secar roupa, na silenciosa República Italiana de 1945.

Bianco era invencível em tudo. No Trabalho, na criatividade, na entrega total aos amigos. Um deles, a quem se dedicou a vida inteira, era o também extraordinário Portinari. Trabalhou com ele até que ele foi embora, bem mais moço.


Bianco, um pintor genial

Num dos mais apreciados (todos são) trabalhos de Portinari, o enorme painel de Tiradentes, genial, magistral, colossal, o acabamento, já na parede, coube a Bianco. Portinari tinha um defeito de nascimento num dos tornozelos, não podia subir escada, nem as próprias, nem a escada para concluir o painel. Isso foi feito por Bianco.

O SENADOR PORTINARI

Por causa de Bianco, fiquei também amigo do Portinari. Não foi amizade duradoura, Portinari morreu muito moço, em 1962, tinha apenas 59 anos. Era comunista do partido, contribuía normalmente para a sobrevivência dele. Em 1945, na Constituinte de 2 de dezembro, o PCB lançou a candidatura dele a senador por São Paulo, parecia invencível. E realmente saiu na frente na apuração.

Durante algum tempo, quase que uma vez por semana, íamos tomar um café num bar na Avenida Atlântica, Portinari me contava histórias interessantíssimas. Vejam só esta.

Perguntei a Portinari por que não mantivera a liderança na apuração. Resposta dele, textual: “Helio, eu não queria ser senador, aceitei como exigência do partido. Eram duas vagas, uma disputada pelo empresário riquíssimo Roberto Simonsen”. (Nada a vez com a família Simonsen do Rio).

Continuou: “Esse empresário fez uma proposta que o Partido considerou irrecusável, meus votos foram sumindo, a contagem dele subindo, tirou o segundo lugar. Não me aborreci, não tinha nada a fazer no Senado. Além do mais, o Partido estava sempre precisando de dinheiro”.

OS INESQUECÍVEIS DEBATES NA CASA DE BIANCO

Já morando em São Conrado, Bianco continuava com o mesmo espírito de juntar os amigos, segundo ele, 10 de cada vez, numa mesa redonda, para que todos pudessem ficar frente a frente, o que não seria possível numa mesa retangular.

Quando Bianco deixou de fazer os almoços, passamos a nos reunir aos sábados, no Satiricon. Mas sempre lembrávamos a ausência de Bianco.

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PS – Só que esse ausência circunstancial, agora é permanente, nada poderá ressuscitá-la.

PS2- Alguns já foram embora, incluindo meu irmão. Às vezes eu não podia ir, o Millôr me recriminava, dizendo: “Helio, você ainda não entendeu. Você é o único convocado, os outros são convidados”.

10 de março de 2013
Helio Fernandes

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