"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 7 de maio de 2013

ENTRE PASSARINHOS E ELEFANTES


Quando Nicolás Maduro começou a sonhar com Hugo Chávez, e a vê-lo sob a forma de passarinhos, tornou-se claro que derrotar Maduro era derrotar Chávez, um líder popular morto de véspera. Muito difícil. As pesquisas de opinião pública e as avaliações de especialistas o atestavam: Maduro na cabeça, e com folga.
Mas não foi assim que aconteceu.
A vitória, apertada e questionada pelas oposições, relançou o debate sobre a situação e os rumos do país.

A “revolução bolivariana”, como outras experiências, insere-se nas tradições do nacional-estatismo, cultura política arraigada nas Américas ao sul do Rio Grande. Pegando fôlego no enfraquecimento da capacidade de controle das grandes potências, têm no lombo conhecidas marcas identitárias: Estado intervencionista, amplas alianças de classes, incluindo-se os trabalhadores urbanos e rurais, apoio nas forças armadas, lideranças carismáticas e credo nacionalista.

Tais aspectos encontram-se no chavismo, destacando-se, em particular, até pela condição de militar de Hugo Chávez, uma aparentemente sólida aliança entre os militares e os movimentos sociais de trabalhadores.

A aliança foi potencializada por características específicas: a primeira é que o chavismo construiu-se de acordo com a lei. Logo após a primeira eleição de Chávez, em 1998, convocou-se uma Assembleia Constituinte para remodelar as instituições.

Graças à cegueira das oposições, que se abstiveram, aprovou-se uma Carta, ratificada depois pelo voto direto, que assegurou, daí em diante, um quadro legal à “revolução bolivariana” e à ocupação, pelos chavistas, das alturas do Estado, em todas as instâncias decisivas — executivas, legislativas e judiciárias.

Quando as oposições acordaram, já era tarde. Ao contrário de outras experiências nacional-estatistas, que quebraram os dentes frente à resistência do Legislativo e do Judiciário (Jango, em 1964; Allende, em 1973), os antichavistas é que teriam, agora, de lutar contra obstáculos institucionais e a lei.

A tentativa frustrada de golpe, em 2002, evidenciou o desespero de oposições automarginalizadas. O último bastião oposicionista — a estatal petrolífera — foi também neutralizado depois de prolongada greve corporativista.

Outra inovação de Chávez foram as frequentes invocações a Deus e a Jesus Cristo, acionando-se o catolicismo animista que, para desgosto dos bem-pensantes, sempre dominou o panorama religioso de Nuestra América. Getúlio, Jango e Perón, entre outros, eram, ou fingiam ser, religiosos, mas nunca exploraram este filão com tamanha devoção.

Com a ajuda de Deus e da lei, e das políticas sociais redistributivas de renda e de poder, os chavistas puderam legitimar-se democraticamente. Entre 1998 e os dias atuais, houve 15 eleições, todas com grande participação, apesar do voto não ser obrigatório.

Uma última singularidade, paradoxal: a retórica nacionalista contundente não se traduziu em rompimento com os EUA, mantendo-se a Venezuela como grande exportadora de petróleo para o mercado estadunidense. Algo impensável no passado: os dólares do maior inimigo financiando uma revolução socialista...

Tais características têm feito a força da revolução bolivariana. Ao mesmo tempo, limitam as perspectivas de eliminação das oposições, sobretudo depois que estas desistiram de recorrer ao golpe ou ao boicote eleitoral.
Nas últimas eleições presidenciais, e apostando nos pontos fracos e no desgaste do governo, despontaram como alternativa real de poder.

A revolução bolivariana tem dois grandes desafios pela frente: compreender as causas que ensejaram o crescimento das oposições e elaborar a problemática aliança entre militares e trabalhadores.

A questão chave é a seguinte: até quando o Exército vai tolerar o crescimento dos conselhos populares? Nas experiências históricas do nacional-estatismo, foi impossível combinar a radicalização dos movimentos sociais e o apoio dos militares, sobretudo quando os primeiros batiam nos portões dos quartéis.

Quando a onda conselhista alcança os soldados, ou ameaça alcançá-los, as vigas mestras das forças armadas regulares — a hierarquia e a disciplina — entram em colapso, ameaçadas de desmoronamento. Também aí são ilustrativas as experiências que ocorreram no Brasil e no Chile.

O discurso de que os militares venezuelanos são “nacionalistas radicais”, com “raízes populares”, já foi feito e refeito nestas paragens, com resultados conhecidos.

Imaginar construir o socialismo do século XXI com os militares participando ativamente do processo é contar com elefantes alados. É certo que os antigos que batizaram o país com o poético nome de pequena Veneza acreditavam que, ao sul do Equador, os elefantes voavam. Com o tempo, porém, por falta de evidências, a crença foi deixada de lado e é duvidoso que possa servir à construção do socialismo do futuro.

07 de maio de 2013
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.

Nenhum comentário:

Postar um comentário