"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 5 de março de 2012

DEZ QUESTÕES À-TOA: "PELO DIREITO DE NÃO PERGUNTAR"

“Hoje, as pessoas de fé religiosa são na maioria livres-pensadores. Levados para a margem de uma cultura na qual a ciência reclama autoridade sobre todo o conhecimento humano, eles aprenderam a cultivar a capacidade para a dúvida. Em contraste, os crentes seculares --- adotando rapidamente a sabedoria convencional do seu tempo --- estão agarrados a dogmas mal examinados.”
John Gray, Straw Dogs – thoughts on humans and others animals; p. xi.

(Contra o ateísmo)
O vídeo “Dez questões que todo cristão inteligente deveria responder” é uma destas demonstrações daquela máxima kantiana que confundiu a confiança diligente com a fé na própria torpeza: sapere aude. Deus não se calou, como se quer sempre dizer a respeito da modernidade --- se bem que é até compreensível ---, o homem é que tampou os ouvidos. Chamou-se a esta surdez tagarela, “razão”. É bem verdade que há um modo Zen da razão livre que se orgulha silenciosamente de ser o efeito austero de se ter, a si mesma, desde o início como coisa superior; e de onde parte, como um deus disciplinador, explanativa do mundo sublunar aos seu pequeninos habitantes.

Essa surdez tagarela, que mais tarde não raro ocorrerá sob a algaravia do caótico do pós-modernismo --- o paroxismo histérico da própria razão emancipada ---, levou o filósofo australiano Stanley Rosen a dizer de Jacques Derrida aquele que não consegue ver, nem pode ficar em silêncio; pela superabundância da interpretação desconstrucionista que nega a precedência da evidência.
Razão pela qual a escrita ganha a patente de Hefesto da sociedade humana. Sem evidência (ou, sem a perspectiva da evidência), isto é, sem fundamento, a razão emancipada nos rendeu o irracionalismo técnico, a Ouroboro carnívora que devora o Ser negando-o mesmo à luz da própria razão que Ele fundamenta.

Minhas razões pessoais por estas questões, sem ter treinamento particular em apologética, é a da curiosidade vigorosa pela convicção alheia no momento em que ela se incumbe de ser porta-voz da racionalidade e combatente na guerra contra a superstição da religião. Vestido do elmo de uma cândida ignorância para o que se quer por “razão superior”, é o que basta e, parece-me, suficiente para devolver a luz do sol à boca de cena do mundo, mais forte que a luz da razão artificial desse teatro de sombras. Pensei que se tratava de coisa que o senso comum poderia dar conta, e me incumbi assim mesmo, com a autonomia precária que algumas horas de ócio conferem a alguém.

Um ateu é um “sem-Deus”, mas isso diz pouco ou nada de essencial sobre o ateísmo; além de ser uma categoria ampla demais. Em termos práticos, do que se tem por efeito do que alguém tem como uma condição existencial, interessa a todos a força social e o que ela demandará sob o seu símbolo, além de uma escolha meramente pessoal.

Retirado Deus de cena, é um consenso no mundo inteligente que coisa equivalente, na silhueta, toma-lhe o lugar na sua ausência. Se o ateu “leigo” (i.e., agnóstico) é um sem-Deus, o ateu militante é um contra-Deus; mas uma e outra espécie desse gênero têm daquela natureza que a dialética dos contrários esclarece sobre a oposição aparente, as duas cabeças de um só ser mitológico que nos joga de um lado para outro até a completa confusão, ou até tomarmos parte de um lado sem saber que ajudamos assim também ao outro. Portanto, a distinção discreta entre ativismo ateu e quietismo niilista (ataraxia) --- ou a afetação de civilidade do laicismo --- não faz, de fato, muita diferença, porque em ambos vige o paradoxal princípio heurístico de não perguntar.
Atacar Deus ou negar atenção ao que pode haver de superior é já ter assumido ser um súdito imoderado da moderação estupefaciente[1].
Deste rende o princípio hermenêutico desconstrucionista que fundamenta (lá ao seu modo “autônomo”) a razão tagarela que se ergue no vôo estático de um Ícaro --- ou, no exemplo mais forte de fatos recentes, no paradoxo 477, o vôo da Air France que em 2009 pensando estar voando caia “suavemente” no meio do Atlântico.

Se sabe que no Direito alguém pode se recusar a fornecer provas contra si mesmo, o que não obstante não se aplica ao testemunho que a evidência flagrante fornece[2], sem já poder evitar certo constrangimento, quando a escrita, a oralidade efêmera e até mesmo o silêncio do corpo e das coisas dá de si in actu sem que se tenha pedido por isso. Negado pela filosofia da produção de textos, ei-la plenamente presente a evidência, sem que se possa desviar os olhos, ou não, pelo menos, sem um custo alto. O histrionismo da tagarelice desconstrucionista é uma afetação de caráter antes de ser uma técnica sofista; e é um sofisticado[3] flamboyant que dentro de um arcabouço em arcos encontra, proporcional ao espaço interno, prova mais forte do vazio metafísico.
Daí, talvez, encontre em Ícaro um modelo digno de ser seguido, já que há tanto vazio metafísico a ponto mesmo dele escapar e negar a evidência exterior, anterior até mesmo às delongadas conferências de filósofos, porque não voar solto no ar das mutações do ser? Se aprendêssemos a bater asas nesse meio rarefeito, se pudéssemos conhecer as leis gerais que regem a aerodinâmica no nada!
Ícaro cai do seu vôo onde as leis da aerodinâmica mudam muito rápido; se ver de perto, a evidência do vôo do mito de Ícaro era de cera desde o começo. Ícaro é um vôo de imaginação[4].

Também pela via negativa se pode criar a evidência de algo que não pode não estar ou ter estado presente. A ciência forense deve muito à produção de provas que negam que algo possa ter sido, para não ter dúvida que tenha sido de algum outro modo. Juristas já se referiram à prova como “ponto de gravidade”, “pedra de toque”, “ponto luminoso” (de luz própria), etc., sem que jamais se tenha questionado, no mar revolto do relativismo, que a gravidade que dá lastro na existência para o nosso julgamento seja apenas um nenúfar metafísico na superfície da língua[5].

Quando o princípio da própria torpeza é confundido com autonomia, a pessoa pode pensar que o seu testemunho cause, por força do arrazoado, um efeito maior que o da evidência. A intuição produzida por um arrazoado é a mais das vezes mero efeito de persuasão --- no caso, e antes, de autopersuasão. Na sombra dessa persuasão involuntária, contra a qual a inteligência nada pode, porquanto falte, habita a torpeza silenciosa que falseia. Esse tipo de ação persuasiva (ou hábito) não é de natureza retórica, mas psicológica: não se trata de condução da atenção ou de ilusão, mas de alucinação. A esse respeito, reconhecendo no liberalismo[6] --- um dos nomes do ateísmo leigo --- uma síndrome, escreve cientista político e ex-militante socialista James Burnham:

“Os liberais diferem, ou podem diferir, entre si, na aplicação, tempo, método ou outros detalhes, mas estas diferenças acabam dentro de um mesmo conjunto de idéias básicas, crenças, princípios, metas, sentimentos e valores. Isso não quer dizer que todo liberal é consciente de suas características comuns; pelo contrário, para a maioria dos liberais os elementos de suas convicções lhes passam tão naturais e automaticamente quanto seu pulso ou respiração” (Suicide of the West, p. 37).
A certeza do ateu militante vem do efeito falseante da própria torpeza, que ignorando as premissas não-racionais da investigação racional, e que só então, num segundo momento, vira debate de arrazoados.
A certeza do ateu, ativista ou quietista, não está fundamentada no empirismo científico ou na força preferencial da razão, mas numa estética sentimental que jaze sedimentada num nível subliminar. Uma fantasia estética, isto é, uma ideologia, um tipo de superstição! Dessa estética, a “coragem” de acreditar na realidade a despeito do pior, que mais que amedrontar, retira-nos a esperança, é a marca do ateísmo ativista.

Na dialética do pessimismo/otimismo, esperança/desesperança, se aceitará mais facilmente que a esperança e o otimismo são entorpecentes e alienantes, e o pessimismo e a desesperança os sinais do realismo e da coragem de ver as coisas com elas são. Mas essa dialética não permite estes maniqueísmos, ambos os tipos são amiúde entorpecentes e alienantes.

Os primeiros colapsam na fé positiva do otimismo e se tornam incapazes de ver a tensão real entre o que é benigno e o que é temível. A solução desse tipo de sentimentalismo travestido de razão são símbolos de harmonia, equidade, tolerância, moderação, etc., confundidos e tornados indistintos da palavra “razão”.
Os últimos colapsam na negação cética e não raro cínica, para quem o pior é o meio verdadeiro de ação humana (ou, ao que tende inevitavelmente e ao oportunismo), que já só podem ver essa condição e agir apenas segundo ela, não raro caindo num solipsismo crítico.

A técnica que falta fundamento acaba levando a quem se detém nela a perder com ela a necessidades de fundamentos. No caso do discurso, a omitir as premissas, como se ignora uma infestação parasita até que esta possa agir e provocar efeitos. Coisa lá diabólica, não tem intenção clara ou agente consciente reconhecível, não pelo menos individualmente, ou não, por certo, desse mundo. Um dos seus efeitos, por defesa eficiente, é justamente passar desapercebido. Assim, ao ponto de a própria evidência ser questionada à “luz” da razão, da razão dos arrazoados.

A luz artificial tem uma propriedade temível, a de criar um teatro de sombras em tudo que ela não está incidindo diretamente. Se fosse possível comparar, a luz da evidência é uma “luz própria”, de cada coisa; a “luz da razão”, a direção da explanação que, sem a faculdade complementar e anterior da intuição da evidência, torna-se no mero tagarelar hipnótico de persuasão, ou em qualquer coisa como na feitiçaria que vira dano cognitivo.

A negação do ser rendeu à imaginação mais leveza, mas também menos autonomia de vôo. Paradoxalmente, a autonomia real da certeza metafísica de um fundamento, que a evidência testemunha, está concebida com autonomia equivalente na imaginação desviante do desconstrucionismo e do ateísmo. Tudo foi feito para vôos mais altos, mas o que então se chama “voar” não passa de uma queda quando as referências já não podem ser percebidas, e cair e voar, subir ou descer já não são sentidos com a mínima diferença. As tendências naturais são, no caso, mais fortes. Dir-se-á, por fim, num último desvario, que ainda assim, por um instante, libertou-se de todos os grilhões o audaz que cai.

Um esforço não muito dispendioso de atenção mostra que há dois tipos de ateus, o “militante” e o “leigo”. O leigo é aquele que não ensina nenhuma religião (exceto talvez a cidadania), nem que Deus exista; e, sobretudo, não fará perguntas sobre isso, por entender que as respostas possíveis são vãs e sem efeito.

“Entender” é aqui só uma figura de linguagem, porque se trata, de fato, da síndrome que descreve James Burnham e que para um John Gray não difere da superstição de um consenso que pensa ter uma visão mais racional do mundo. As convicções do ateu decorrem de uma incapacidade, de uma limitação cognitiva; e uma limitação cognitiva faz um tipo humano. Mas não se trata antes de uma incapacidade para a fé, menos que isso, de uma incapacidade mesmo para os procedimentos heurísticos da ciência.

É o resultado dessa limitação que marca o tipo ateu, nas suas duas faces: a astenia do caráter associada ao quietismo leigo, e o cinismo trágico do tipo militante. O militante ateu é um ativista, ele distribuirá panfletos, iniciará campanhas de propaganda, denunciará a intransigência e a superstição, e buscará positivar no direito tudo que se encontre em disputa na sociedade albergando os movimentos de “liberação” (v. nota 6) sob o princípio da laicidade. O princípio da laicidade é o argumento da própria torpeza feito em princípio angular do Direito.

Ninguém invocará a própria torpeza como sensatez, por certo reflexo de singeleza --- confundindo o singelo à simplicidade de boa razão, ao bom senso ---, não se trata disso; mas não sabendo os distinguir permite ao argumento simplório passar por sensatez e maior razão. Ao qual, então, acostuma-se a assim reconhecê-lo.
Não surpreende, portanto, que desse ponto o ateu passe ao próximo, ao invés da dúvida, a certeza que dispensa o fundamento das premissas para crer com fé ardorosa no efeito das suas próprias palavras.



As questões do vídeo, exemplos dessa ladainha leiga ou militante, estarão aqui abaixo, aos poucos, parodiadas e respondidas de algum modo:

Questão 1 à-toa: Da restituição da virgindade metafísica:
“Por que Deus não cura os amputados?”

Questão 2 à-toa: Fora com os parasitas! (Uma preocupação para os ateus?):
"Por que há tantas pessoas morrendo de fome no mundo hoje?”

Questão 3 à-toa: A revolta dos “inocentes”:
“Por que Deus ordena a morte de pessoas inocentes?”

Questão 4: Por que só existem tolos defendendo a ciência na mídia?
“Por que há tantas besteiras científicas na Bíblia?”

Questão 5 à-toa: Liberdade é escravidão!
“Por que Deus se inclina tanto para promover a escravidão na Bíblia?”

Questão 6 à-toa: O bem hedonista:
“Por que coisas más ocorrem a pessoas boas?”

Questão 7 à-toa: A crítica da evidência:
“Por que nenhum dos milagres de Jesus Cristo deixou alguma evidência?”

Questão 8 à-toa: A casa assombrada do ateísmo:

“Como explicar que Jesus nunca tenha aparecido de fato para você”
Questão 9 à-toa: O princípio hermenêutico da própria torpeza:
“Por que Jesus quer que comamos sua carne e bebamos o seu sangue?”

Questão 10 à-toa: As mulheres, o grande mistério do universo:
“Por que o número de divórcios entre cristãos é o mesmo que entre não cristãos?”


Notas

1. Um exemplo esclarecedor dos efeitos do agnosticismo e da ataraxia epicurista (v. artigo “Emil Cioran: pessimismo, contradições e apatia”, de Rodrigo Gurgel, 20 de Fev de 2012, no Mídia Sem Máscara), pode ser contemplado na declaração de Maria do Rosário recente [a respeito da intervenção na Síria]:

“Nós [governo e ministros ligados ao apelo dos direitos humanos] somos [enfaticamente] contra o uso da violência, seja a que pretende armar os rebeldes na Síria, seja a do governo de Bashar Al-Assad. Queremos a diplomacia como marca da política desse século”.

No caso, o pacifismo radical, que já servira de artifício jogado sobre os ombros dos países ocidentais pelos soviéticos, para que aqueles não agissem, assume aqui que o ponto de conversa com o governo sírio será depois dele ter esmagado parte de seu próprio povo. A mesma lógica poderia ter evitado a Segunda Guerra com um simples acordo com Hitler.

2. Se bem que esse parece ser um princípio do direito americano que por aqui se perdeu em algum momento.

3. A etimologia de “sofisticado” vem de sophistikos, sophistes, com o sentido antigo de “adulterar”.

4. “Strauss afirmou certa vez, com razão, que a não ser que o pensamento seja regulado pelo mundo do senso comum do nosso dia-a-dia, ele logo se torna indiscernível da imaginação” (Staley Rosen, Hermeneutics as politics; 3).

5. É bem verdade que Carlo Ginsburg tentou algo assim em Il giudice e la storico (1991).

6. O tipo “liberal”, ou o Liberalismo como conjunto de idéias básicas, crenças, metas, sentimentos e valores, que modelam o caráter, são, de fato, aqueles do humanismo ateu, descrito pelo padre Henry de Lubac em O drama do humanismo ateu (1944).

Sua metafísica é uma antropologia, não raro com tons místicos indisfarçados. Sua profissão de fé é a do materialismo antropológico, o relativismo utilitário, (a estética) da harmonia equilibrada com o meio, que especulou sobre o tema do panteísmo e do holismo flertando com o místico.

As demandas do liberalismo (numa de suas faces, segundo John Gray) --- a forma política do humanismo ateu --- são as demandas de “liberação” para com o dever dos valores morais (a maioria com fonte na religião, sobretudo no cristianismo). Mas fica por aí, porque a partir daí a distinção com o marxismo, no seu amplo leque de correntes (tão “contraditório” internamente quanto as curvas sinuosas de um rio meandrante que, ainda assim, deságua no mar), como programa de subversão dos valores tradicionais, fica completamente indistinto do liberalismo.

A distinção estava bem clara, hoje menos, nos irmãos siameses PSDB/PT. Nos Estados Unidos, a distinção é uma distinção interna do partido Democrata, no poder hoje sua face mais radical.
A social-democracia do primeiro é um socialismo reformista lento e abrangente, a ponto de transformar, não distinto do segundo, toda percepção social nas principais preocupações políticas, econômicas, morais, e com estética típica do tipo liberal; o segundo, o partido socialista revolucionário, dos “trabalhistas”, e não apenas reformador, leva um pouco mais longe as reformas tipicamente liberais, visando não apenas eleições livres, como particularização na legislação das veleidades pessoais com outro fim.
É ainda pela “razão” de que pequenas modificações difusas, porém abrangentes, podem mudar a face do mundo em alguma coisa no horizonte do possível mais maleável a quem pretende um mundo sempre um pouco melhor: messianismo disfarçado de camuflado esoterismo social.
As “liberações” de uma das faces do Liberalismo desejam não apenas liberação moral, mas moral passa a ser o que é liberado conforme a vontade pessoal --- no mesmo sentido ainda, não apenas democracia, mas “democracia radical” ---; não apenas justiça, mas igualdade por ação positiva do estado e o estado não apenas com garantidor da ordem legal, mas como tutor da vida civil.
Março 03, 2012

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