"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 24 de março de 2012

A USP E A CORROSÃO DO CARÁTER

Acadêmicos brasileiros pouco afeitos à cultura imaginam que noções éticas, morais, científicas surgem apenas em textos considerados relevantes nas seitas universitárias.
A preguiça e a pressa na publicação, unidas, logo brotam juízos “definitivos” sobre algum campo do pensamento. Assim ocorre com o tema antigo sobre a presença ou ausência de caráter nas pessoas.

Os supostos pesquisadores consideram que o conceito de uma corrupção do caráter aparece com o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Esse teórico, é certo, muito ajuda a entender a vida moderna. Seu livro sobre o caráter corrompido integra uma série de textos que narram, com olhar clínico, as mudanças e o estilhaçamento de valores na sociedade urbana ocidental.
Com a flexibilização do trabalho e a insegurança resultante, temos a massa dos que perderam a confiança nos governos e nos mercados. Outra obra de Sennett indica a crise da sociedade e do Estado. Trata-se do monumental “O Declínio do Homem Público”. Ali, ele demonstra o quanto as formas do Estado foram enfraquecidas, após o século 18, em proveito das “intimidades tirânicas”, os movimentos que prometem às minorias a defesa de seus direitos sem passar pelos mecanismos do poder público.

Baseando-se na “identidade” assumida pelos indivíduos, tais movimentos assumem formas repressivas das quais é quase impossível escapar. Antes de ser um cidadão, o sujeito pertenceria à sua “comunidade”, cujas causas importam mais do que as coletivas. A primeira vítima da corrosão do caráter é a vida pública. Movimentos como os descritos por Sennett conduzem milhões às ruas para exercer pressão sobre a sociedade e o Estado. Mas pouco ou nada fazem diante de descalabros ocorridos na economia, no Judiciário, no Executivo, nos Parlamentos.
A identidade maior deixa de ser a cidadania e se transfere para instâncias que defendem particularidades. Sennett respeita os referidos modelos intimistas, mas também mostra o quanto sua pauta é unilateral e autoritária, tiranizando seus adeptos.

A corrosão do caráter é potencializada quando os grupos e indivíduos assumem o perfil da militância. O militante padrão, por mimetismo, sacrifica normas éticas, sociais e políticas em proveito de seu movimento, visto por ele como a fonte última dos valores.
Todos os demais âmbitos seriam movidos por interesses escusos. A maior parte do material histórico e sociológico usado por Sennett vem dos EUA e da Europa.

No Brasil, temos um campo mais complexo. Aqui, longe de permanecerem distantes e hostis aos poderes públicos, lutando contra eles na concorrência para dominar indivíduos e grupos, movimentos sociais mantêm excelentes tratos com os governos e Parlamentos. Eles sabem aplicar ventosas nos cofres estatais (as ONGs…) de modo a expandir suas forças, mas guardam a retórica contrária ao Estado.

A busca de verbas põe a militância ao dispor de partidos políticos hegemônicos. O militante exerce seu fervor de tal modo que, em pouco tempo, pratica o que suas doutrinas condenavam ou condenam.
O militante, cujo caráter foi corroído, julga que os interesses sociais alheios à sua pauta são “burgueses”, “abstratos”, “conservadores”. Ele se imagina autorizado a manter em lugares estratégicos oligarcas exímios na arte de roubar os cofres públicos. Na superfície, movimentos como a UNE (e suas subsidiárias) arvoram palavras de esquerda. Mas dão suporte às mais retrógradas forças políticas. Líderes estudantis que ontem lutavam contra a corrupção, ao subirem ao poder de Estado, guardam excelentes relações com oligarcas truculentos.

Entre as manifestações contra Fernando Collor e o realismo de hoje não existiria, para a esquerda oficial, nenhum elo. Os valores antes repetidos qual ladainhas são ditos “bravatas” pelos que aderiram à razão de Estado corrompida. A militância é processo corrosivo a ser notado em todas as profissões. Em todos os setores da vida social e política ela dissolve valores efetivos em prol dos dirigentes demagógicos e de suas alianças em proveito próprio.

A que assistimos na USP nos últimos dias? Lutas contra o arbítrio autoritário dos oligarcas? Denúncias de corrupção política (que lesa milhões de brasileiros em termos de educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia)? Batalhas contra a falta de democracia nos grandes partidos, nos quais os dirigentes são donos das alianças, das candidaturas, dos cofres, sem ouvir as bases? Movimentos contra o privilégio de foro, algo que faz de nosso Estado um absolutismo contrário à República? A pauta dos militantes, professores e alunos é alienada em todos os sentidos, da marijuana ao populismo rasteiro. Militantes fazem sua revolução em escala micrológica contra o reitor, mas os dirigentes nacionais do movimento estudantil negociam apoio aos donos do poder, os verdadeiros soberanos.

Aviso aos bajuladores do petismo: a noção de caráter é velha como o saber humano e foi estudada, sobretudo, por um pensador “burguês”, Immanuel Kant. Para ele, o caráter é “marca distintiva do ser humano como racional, dotado de liberdade”. O caráter “indica o que o ser humano está preparado para fazer a si mesmo”. Dentre as técnicas para a corrosão do caráter, as drogas são as piores. É irresponsabilidade ética afirmar que elas não prejudicam os usuários ou “ajudam a melhorar a imaginação nas artes e nas ciências”.

A leitura de pesquisas como a de Alba Zaluar, sobre a indústria das drogas, traria prudência aos seus apologetas nos câmpus. Militantes sempre ignoram e combatem a liberdade e a dignidade alheias, basta ver as multidões que apoiaram tiranias modernas, do fascismo ao stalinismo.
Hoje, na USP, a militância aposenta a busca de “mudar o mundo”. Sobram os coquetéis Molotov para a defesa do nada, da irrelevância absoluta, da morte.

24 de março de 2012
Roberto Romano
Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/11/2011

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